Capoeira: carisma e poder
Hoje estive numa roda muito bacana no clube onde treino aqui em Brasília. O jogo fazia parte de uma comemoração da Semana Santa, mas em alguns momentos o pessoal não foi muito católico. Houve alguns jogos mais duros e, por azar, era eu que estava no pé do berimbau quando eles aconteceram. O mestre -- um pouco rispidamente -- deu uma bronca dizendo que era eu que deveria comprar o jogo, interrompendo o clima violento. Ora, não achei que tinha condições de comprar com os graduados que estavam jogando: primeiro porque não possuía grau hierárquico correspondente ao dos dois camaradas; segundo porque não teria condições de manter o ritmo de jogo mantido pela dupla; terceiro porque tudo isso acarretou insegurança na hora de entrar na roda.
No final do evento, fui conversar com o mestre. Falei justamente isso: eu nunca compraria aquele jogo de um graduado que estava jogando duro com outro camarada do mesmo grau hierárquico. Eu iria passar por alguém que estava querendo aparecer, ou cortar o clima do jogo, gerando um anticlímax. Para acabar com o jogo violento, não seria mais indicado que o próprio mestre, valendo-se do seu poder dentro do grupo, interrompesse o jogo dos dois camaradas? A bronca pública que o mestre me deu não seria uma forma de ele mesmo se furtar a assumir a sua responsabilidade na condução da roda? A resposta dele foi a de que era necessário que o aluno desenvolvesse atitude. Mas o mestre não teria também que ter a atitude de interromper um jogo que extrapolou os limites da brincadeira?
Entendo o raciocínio que está por trás dessas palavras: o aluno que já possui algum tempo de capoeira deve ter a iniciativa de comprar um jogo violento. Mas essa compra de jogo seria bem vista no jogo de poder que está por trás de uma roda de capoeira? E se o aluno não quiser chamar a atenção sobre si, negando-se a entrar nessa mesma disputa de poder?
Existe uma concepção de maestria que tem como requisito principal para o reconhecimento do neófito não apenas a capacidade técnica, mas também a habilidade para conduzir um evento da melhor maneira possível. O poder tradicional e carismático do mestre não entra em contradição com a democracia na condução da roda? É claro que nem todos os mestres são iguais: eles se utilizam do carisma -- que é a base de seu poder -- de maneiras diferentes. Um mestre "paizão" pode desenvolver um método de ensino muito mais democrático do que um mestre inseguro quanto à sua situação. O mestre Pombo sempre dizia: " onde não há ordem, existe o caos". Essa questão do reconhecimento do mestre é interessantíssima, pois o mesmo mestre pode ser reconhecido num ambiente e não em outro.
O carisma é fundamental para um mestre de capoeira, e pode levar ao autoritarismo, a uma condução perfeita de roda e até mesmo à modificação da vida do aluno (é só ver os depoimentos dos alunos de mestre Bimba sobre a figura de seu mentor). Essa questão da política da capoeira é interessantíssima: padrões tradicionais e carismáticos de poder entram em conflito com padrões burocráticos e modernos.
Um abraço a todos, e feliz Páscoa!
1 Comments:
Aliás, o próprio exercício da democracia ,não depende da crença que as pessoas possuem nela? Do seu carisma, portanto? O carisma do mestre pode ser fundante de um sistema de ensino centrado no aluno, não é? Percebi isso com o mestre Pombo.
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