terça-feira, agosto 07, 2007

A cocorinha

Camaradas, um dos motivos por que fui seduzido pelas aulas do mestre Pombo de Ouro foi a sensação de entrar em contato com o espírito de uma capoeira mais próxima daquela jogada tradicionalmente em Salvador, não importando o rótulo regional ou angola. Vou dar um exemplo meio estranho mas que é muito significativo.


Num determinado dia, ensinando a cocorinha para algum dos alunos -- movimento presente em todas as seqüências da regional -- o mestre fala: "cocorinha, como o nome diz, é a posição de fazer cocô, então tem que agachar". É assim que a gente percebe que certos movimentos de estilos mais tradicionais vieram de gestos e posturas de corpo antigas e até mesmo em extinção. Digo em extinção porque essa postura de corpo corre perigo de desaparecimento com a disseminação das privadas nos banheiros do país. Ora, talvez seja por ser considerada arcaica que ela foi abandonada tanto por muitos grupos desejosos de se identificar com a modernidade quanto por muitos capoeiristas que se sentiam constrangidos ao realizá-la.


Ainda sobre a cocorinha, Frede Abreu escreveu que, nos intervalos entre um frete e outro, os escravos carregadores da Salvador do século XIX esperavam os carretos acocorados em seus cantos de trabalho. Um outro contexto de utilização da mesma técnica corporal.


As diferentes técnicas corporais pressupõem diferentes relações da pessoa com o próprio corpo. Por exemplo, a utilização da cabeça como apoio para carregar peso. Um capoeirista e estudioso americano chamado Greg Downey ressalta que a cabeça foi -- e ainda é -- muito utilizada pelas classes populares brasileiras para carregar objetos. Existem registros dos mesmos escravos estivadores baianos esvaziando a carga de barcos inteiros carregando sacos sobre suas cabeças; e, além disso, quem nunca viu, ainda hoje no interior do país, lavadeiras de roupa se utilizarem da mesma técnica?


Ora, da utilização da cabeça como apoio para carregar peso até a sua utilização como arma é um pulo! Uma cabeça que agüenta o peso de vários sacos de arroz pode muito bem se transformar numa arma perigosíssima. E mais, se está acostumada a equilibrar peso, pode também ser utilizada como ponto de apoio do corpo no chão. É por isso que a capoeira vai exigir dos setores médios da sociedade brasileira uma outra relação com o próprio corpo.


Cito o meu caso como exemplo: tenho um verdadeiro bloqueio quando se trata de colocar a cabeça no chão. É que me acostumei a conceber a cabeça como uma parte frágil, lugar do pensamento e só; fico com medo instintivo de torcer o pescoço.


As próprias seqüências de ensino da regional muito provavelmente tenham sido desenvolvidas para inculcar essa nova relação com o corpo nos alunos do mestre Bimba, desacostumados com o jeito de se movimentar da vadiação. Aquele mesmo camarada americano escreveu que o germe da diferenciação angola-regional surgiu a partir daí. Vários movimentos da vadiação deviam gerar sensações de desconforto, constrangimento e inibição na primeira geração da regional; além disso, como se buscava uma forma de defesa pessoal, muitos movimentos da vadiação tiveram que ser adaptados para poderem ser usados numa luta.
Assim, da apropriação dos movimentos da capoeira pelas classes médias baianas foram desenvolvidos novos padrões de movimentos dentro da brincaderia.
Mudar a relação da pessoa com o próprio corpo pode significar também modificar a própria forma de se relacionar com o mundo. Muniz Sodré, outro estudioso e ex-aluno de mestre Bimba, já escreveu que para o pensamento africano não existe separação entre corpo e mente. O corpo pensa e é portador de toda uma visão de mundo. Hoje em dia vários estudiosos vêm prestando atenção nesse aspecto da relação corpo e consiência, estudando as várias práticas esportivas.

Chegam então a perceber que a imbricação corpo e mente não acontece só na capoeira; pode ser vista também em outros esportes. Tostão -- ex-jogador, médico e atualmente cronista esportivo -- volta e meia aponta para a existência desse fenômeno no futebol, citando o exemplo do "pensamento corporal" de craques como Pelé, Romário e os dois Ronaldos.
Baseado nessa idéia de que a modificação do corpo interfere na apreensão e na construção da realidade é que outro ex-praticante e estudioso da capoeira, César Barbieri, vai dizer que a vadiação é "um jeito brasileiro de aprender a ser". Tudo bem, pode parecer uma afirmação nacionalista, mas por trás dela existe uma idéia interessante: a de que uma espécie de espiritualidade da capoeira é desenvolvida a partir do corpo do praticante. E como este pode ser treinado, não importa muito sua nacionalidade.

Até a próxima, camaradas!