sexta-feira, março 07, 2014

Ser criança não é brinquedo não



Foi da quarta para a quinta-feira que sonhei que o mestre Pombo de Ouro estava me batizando e dando uma corda. Lembro que era vermelha, mas segundo ele, não era de mestre, mas simbolizava outra coisa. Não estranhei muito porque sei que no meio capoeirístico, abundam sistemas de graduação, embora eu não conheça nenhum cuja corda de mestre não seja daquela cor. 
Por outro lado, já que o mestre sempre me dizia que a verdadeira corda era na vida, esse sonho me remete a outros acontecimentos não relacionados à minha carreira – já quase encerrada --  na capoeira. Remete a um desejo infantil de ser um bom passista de escola de samba. O que o provocou foi o fato de eu ter assumido minha vontade de ser passista me vestindo como um deles. Foi o meu inconsciente me dizendo: olha, você conseguiu, realizou um desejo que não ousava admitir nem a si mesmo e nem aos outros”. Ter me vestido de malandro na confraternização de final de ano na casa de amigos, em dezembro passado, marcou o começo do afloramento desse desejo reprimido. Ter sambado nos ensaios da Aruc e da Asa Norte vestido de malandro apenas deu continuidade ao processo. Sua conclusão se deu durante o desfile da escola e teve três momentos.
Eu não teria sonhado o sonho não fosse uma seqüência de acontecimentos que se sucederam durante o desfile: o primeiro, ter escutado Ito Melodia, filho do grande puxador de samba Haroldo Melodia cantar “É hoje” em memória do pai e em homenagem à União da Ilha, escola que o consagrou, na abertura do desfile da Unidos da Vila Planalto e Lago Sul. Nunca sambei tão bem e tão emocionado quanto naquele momento, pois me lembrei de que, em 1982, eu e meus irmãos imitávamos Haroldo e queríamos ser puxadores de samba quando crescêssemos. O samba da Vila Planalto em homenagem ao grande cantor sendo puxado pelo seu filho disparou em mim a regressão e fez ressurgir o garoto de 9 anos. Era ele que dançava ali. Dançava para Haroldo Melodia da forma que ele gostaria de ter dançado há mais de 30 anos. O passo clássico, os rodopios e quejandos saíam fáceis dos seus pés. Dançava como se desfilasse na antiga Marquês de Sapucaí, anterior ao sambódromo, em 1982 cantando “É hoje”, com Haroldo. Chorei como chorei quando vi o rapaz bêbado dançar em Cachoeira: uma parte dele, ali, era eu. Mas isso é segredo.
O segundo, depois de minhas sapatilhas terem se esfarelado e da cartolona ter decolado da minha cabeça, a pequena carteira de plástico onde levava meus documentos caiu e foi parar na mão do diretor de minha ala. Sincronicidade: a perda da identidade, o estado liminar já estava instalado ali. Já não sabia quem -- ou quando --  era: menino ou adulto?
No final do desfile, o terceiro acontecimento: o menino cansado vê surgir em sua frente mestre Dionísio, professor de dança do samba no Rio de Janeiro, bailarino popular respeitadíssimo e referência para vários mestres-salas do país. Não pensei duas vezes -- aliás, nem mesmo uma -- fiz a reverência e o abracei. Ele retribuiu o abraço e pareceu alegre por ter sido saudado e reconhecido por aquele folião anônimo de uma obscura escola de samba do Distrito Federal.
O sonho foi uma tentativa de lidar com tudo isso, com tudo o que despertado desde dezembro até o último dia de carnaval. Nele, o mestre que eu mais respeito e com quem mais e melhor convivi, me concedia o seu reconhecimento, reconhecia a validade do sonho daquele menino. Não foi rito de passagem coisa nenhuma, pois saí de lá ainda criança, lisonjeado pelo elogio do professor à dedicação com que estudava a matéria que ele lecionava. Nada ali se construiu, mas foi uma criança de nove anos e que sambava descalça que saiu alegre ali da dispersão. Alguns momentos depois, ela se transformaria num adulto meio desorientado, sem documentos e sem dinheiro para voltar pra casa. Era o começo da quarta-feira.

quarta-feira, março 05, 2014

Sobre o carnaval na Sapucaí em 2014



Lendo algumas resenhas sobre o carnaval das escolas do grupo especial do RJ, percebo que os autores adotam o ponto de vista dos jurados dos desfiles na avaliação de cada agremiação. Sendo assim, não posso deixar de dar a minha opinião, formada a partir do ponto de vista de um folião presente nas arquibancadas e com uma determinada concepção do que deveria ser um desfile de escola de samba. Para a pessoa que está vendo o desfile nessa condição, não conta muito se existe um grande espaço entre as alas devido à lentidão de um carro alegórico cujo motor está defeituoso ou a falha nas luzes de um carro alegórico. O espectador-folião percebe tais detalhes de uma forma mais difusa, através de sua influência no conjunto do desfile.
Segundo essa perspectiva, o principal defeito da Mangueira não foi a quebra da cabeça do seu lindíssimo carro alegórico, mas o fato de o samba não ter funcionado na avenida: a festança brasileira não empolgou, a escola passou linda mas sem vibração e a batida do surdo que caracteriza a escola -- se os deuses da folia me permitirem essa comparação tão desfavorável contra a mitológica agremiação -- ficou mais para cortejo fúnebre do que para carnavalesco. Foi uma grande pena, não sei se isso tem a ver com a forma como o puxador escolheu para levar o samba ou com a atuação do imponderável na transposição do hino do estúdio e do ensaio para a avenida.
Mas nem tudo foi negativo no desfile da Estação Primeira. Sua comissão de frente estava perfeita e nos desfiles do primeiro dia, apenas a do Salgueiro foi capaz de se equiparar com ela. As funções de apresentação da escola e do enredo de forma simples e eficiente foram muito bem cumpridas. E tudo isso sem apelar para os efeitos especiais. A importância disso não pode ser diminuída, dado que em muitas escolas – como na Grande Rio e sua bala de canhão humana – os efeitos acabam por ofuscar o papel daquela parte da agremiação. A comissão mangueirense encenava o contato dos índios com os portugueses e a gestação das festas populares brasileiras dentro de uma oca – que, no fim das contas, representava o próprio Brasil. Quando a oca se abria, saíam de lá as festas de boi, o forró, a parada gay e as festas barrocas da Bahia e de Ouro Preto.
Além daquela da Grande Rio, outra comissão de frente que utilizou efeitos especiais foi a da Beija-Flor, porém de uma forma mais refinada que sua coirmã de Duque de Caxias. Trazia uma visão de conjunto sobre o enredo e apresentava a escola, porém não era tão simples e eficiente quanto as da Mangueira e do Salgueiro. Talvez devido às particularidades de seu tema. Selminha Sorriso e Claudinho, seu premiadíssimo casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, vinham bailando num cenário que simulava estúdio de tv; em torno deles voavam beija-flores. Atrás desse estúdio, havia um tabuleiro de xadrez -- que talvez evocasse o jogo cerebral que é a tônica dos bastidores da televisão e da própria competição pela audiência, que – convenhamos -- é o negócio do homenageado da escola, o Boni. Foi uma comissão de frente heterodoxa, criativa, porém menos telúrica que as da Mangueira e do Salgueiro.
Aliás, o adjetivo “telúrica”  serve bem para expressar qual deve ser, na minha opinião, uma das qualidades principais de uma comissão de frente e de uma escola de samba em geral: não confio em comissões que se abusam de carros alegóricos e dos efeitos especiais. Perde-se de vista a relação da escola com o “samba no pé” e a batucada, princípios que deram origem aos GRES. É por isso que prefiro uma comissão que venha com os pés no chão e que use somente um tripé de apoio para sua evolução.
Continuo a abordar o desfile da Beija-Flor e devo confessar de antemão que não gostei do enredo da escola nilopolitana. Deu-me a impressão de ser uma armação para ganhar carnaval, fazendo uma homenagem indireta à Rede Globo, maior estação de tv do país, patrocinadora e transmissora dos desfiles cariocas. A azul e branco da Baixada já havia se utilizado da mesma tática ao escolher Roberto Carlos em 2011, só que, naquele ano, o homenageado tinha mais substância cultural e tocava mais o público do que um diretor de tv, que, se teve muita importância na história da televisão, nunca foi populaer e sempre esteve muito associado aos bastidores da organização da Rede Globo e às batalhas na disputa pelo Ibope, mundos não muito afetos ao lirismo que dá o tom nos sambas que homenageiam personalidades culturais.
Acho que a própia Beija-Flor percebeu isso e acabou escolhendo uma espécie de enredo duplo: ao cantar a história dos meios de comunicação junto com a biografia do Boni, a escola buscou dar estofo ao seu desfile. Assim, o que aconteceu na avenida foi o atropelamento do tema biográfico -- e árido em termos carnavalescos -- pelo outro, histórico e muito mais fértil. A escola veio bonita, luxuosa e monumental como se exige hoje das agremiações do grupo especial, tinha uma boa levada do samba – graças ao seu quase mitológico puxador -- e boa bateria, mas tudo isso foi prejudicado pelos problemas do enredo escolhido.
É claro que não posso deixar de escrever sobre o Salgueiro, a melhor escola do primeiro dia. O samba de escola pegou nas arquibancadas, grande parte do público já sabia de cor a sua letra ou acabou aprendendo ali na hora mesmo, contagiada pela empolgação da platéia e da escola, pela beleza das fantasias e dos carros alegórico se pelo bom desenvolvimento do enredo.
O enredo foi muito bem apresentado: todos os seus momentos muito bem desenvolvidos e caracterizados por cores, alegorias e subtemas muito bem matizados. A comissão de frente veio telúrica e, ao mesmo tempo, aérea. Com os pés no chão apresentado os orixás citados no samba e levitante, invocando o tema de uma nova relação dos seres humanos com a natureza por meio da mulher que flutuava no tripé de apoio. A ligação das religiões afro-brasileiras com as do Extremo Oriente não é uma novidade nem no mundo do samba nem no mundo cultural brasileiro, mas relacionar os orixás e as forças da natureza por eles representadas à preservação do meio ambiente é algo mais criativo.
Dito isso, confesso que o desfile salgueirense não chegou a me empolgar como aquele da Portela em 2011 – para mim, a epítome do telúrico, já que suas fantasias eram fracas mas a vontade de mostrar dignidade depois do incêndio do barracão fez com que a escola pegasse fogo na Sapucaí. Talvez o Salgueiro não tenha me levado a um delírio extático por seu samba ser “de pegada” e com pouco lirismo. Ou talvez pelo próprio peso de suas lindas fantasias. Sei que o luxo tornou-se exigência para um desfile campeão no grupo de acesso há pelo menos  40 anos, mas em toda evolução perde-se alguma qualidade do estado de coisas anterior: as “super-alegorias” das “super-escolas de samba S.A.” realmente tendem a ofuscar o samba no pé. A maior organização e profissionalização dos GRES acaba por exemplo, transformando os passistas em meros preenchedores do espaço deixado pela bateria quando do seu recuo. Uma pena, pois o público acaba não apreciando a arte desses bailarinos populares e os passistas não têm espaço para executar seus passos barrocos e cativar a platéia com seus acenos e expressões corporais.
Uma pequena menção às escolas pequenas: por culpa da Gol, não cheguei a tempo de ver o “Batuk” do Império da Tijuca, que tinha um samba com a pegada tão forte quanto a do Salgueiro. Sabia que a desvantagem econômica contaria muito contra ela, mas gostaria de ver se o samba no pé compensaria de alguma forma a falta de luxo das fantasias. A São Clemente me impressionou. Seu samba tinha qualidade poética e melódica, era leve, simpático e “pra cima”. E tudo isso ficou mais ressaltado ainda no desfile. O enredo também foi muito bem desenvolvido.

terça-feira, novembro 26, 2013

Correção sobre o ngolo

Camaradas, devo fazer uma correção referente à postagem anterior. O ngolo já havia sido documentado, sim, nos anos 1960 pelo pintor luso-angolano Albano Neves e Souza que foi quem revelou sua existência a mestre Pastinha. Mas é bem possível que Mattias Assunção e Cobrinha Mansa tenham sido os primeiros a filmar e divulgar essa arte marcial angolana.
Um abraço,
        Moreno

sábado, novembro 23, 2013

O Ngolo finalmente documentado!

Camaradas, acabo de retornar de Cachoeira no Recôncavo Baiano, região que aparece no imaginário de todo o capoeirista como local mítico de origem do samba de roda, da capoeira e do maculelê. Pois bem, a cidade situada às margens do Rio Paraguaçu sediou o I Congresso Internacional de Pesquisadores de Capoeira, evento simplesmente fenomenal, de altíssimo nível. Muitos dos mais importantes pesquisadores de capoeira estiveram presentes: Liberac Pires, Líbano Soares, Júlio César Tavares, Luiz Renato Vieira, Mattias Assunção, César Barbieri (que, inclusive, citou o mestre Pombo de Ouro em sua palestra), Janja Araújo e outros não tão conhecidos.
Gostei muito das palestras do Líbano Soares e da mestra Janja, mas não vou aborrecer vocês com questões políticas e teóricas sobre a capoeira. A razão de eu estar escrevendo aqui tem a ver com a projeção de estréia do documentário "Jogo de corpo" feita durante o encontro. Mattias Assunção e Mestre Cobrinha Mansa simplesmente foram ao sul de Angola e finalmente conseguiram não só encontrar como também filmar as lutas africanas do ngolo e da kandeka.
Para aqueles que estão entrando agora no mundo da capoeira, é preciso contar uma pequena história para explicar a minha empolgação: há mais ou menos 50 anos um pintor angolano  em visita a Salvador disse a mestre Pastinha que existia uma luta/dança na África que provavelmente estava na origem da capoeira, o ngolo ou dança da zebra, dançada durante um ritual de passagem das moças de uma determinada etnia do sul de seu país. Como sempre acontece no mundo da capoeira, essa história entrou no ambiente das disputas simbólicas referentes à origem da brincadeira: africana, brasileira ou crioula a depender de grupos e de projetos políticos-identitários. O fato é que nunca ninguém havia filmado o ngolo ou a kandeka e a existência delas sempre ficou num terreno muito disputado. É claro que as controvérsias sobre o tema não vão acabar e as disputas referentes ao peso relativo dado aos desenvolvimentos crioulos ou africanos na capoeira nunca serão esgotadas.
Foi muito emocionante ver no documentário que o balanço de corpo e os tapas da kandeka têm muito a ver com a ginga e as negaças dos antigos batuqueiros cariocas. Já o ngolo é uma luta/dança em que imperam os chutes e a ginga. Ambas não possuem nem cabeçadas nem rasteiras.  O ngolo é realmente praticado pelos homens -- todo mundo bebum, gente! -- durante a cerimônia que marca a passagem das meninas do grupo à vida adulta. Não tem instrumentos musicais, mas estão todos em círculo batendo palmas e cantando. Por outro lado, a kandeka parece não estar ligada a alguma cerimônia especial, pelo menos na Angola dos dias de hoje, mas é acompanhada por tambores, palmas e cantos.
Segundo Mattias Assunção, autor de um estudo recente que dá conta do estado da arte do que se escreveu até hoje sobre capoeira, não se pode dizer que o ngolo seria a origem da brincadeira, até porque outras formas de danças ou lutas devem ter existido ou ainda existir em outras regiões da África -- não necessariamente de cultura banto, como o ngolo e a kandeka -- cujos praticantes vieram parar no Brasil. Isso para não se falar dos desenvolvimentos que aconteceram em território brasileiro durante a crioulização da capoeira. Porém, não se pode negar o parentesco muito próximo que existe entre suas técnicas corporais. 
Além de ser corporal e físico, tal parentesco é, também, musical. No filme tive a oportunidade de escutar o berimbau como é tocado no sul de Angola: sua caixa de ressonância não é a cabaça, mas a boca do tocador e o arame ou um entrelaçado de cipós bem finos servem como corda. E como são atados de forma bem frouxa às extremidades da verga, o som que fazem é muito, mas muito próximo daquele do berimbau de mestre Bimba. Por outro lado, ao escutar a entonação e a voz de alguns dos cantadores – descontando-se que as letras estão em línguas como quimbundo, ambundo, ovimbundo ou chokwe – pensamos ouvir mestre João Grande.
É claro que também no campo musical é muito complicado falar de origens, até porque todas essas formas de cantar, de tocar o berimbau e de jogar a kandeka ou o ngolo também se modificaram durante a história angolana, marcada pela guerra civil até bem recentemente; e em dias mais atuais pela modernização caótica, acelerada e extremamente desigual. É muito possível que os mestres Bimba e João Grande tenham chegado a vocalizações, afinações e toques de berimbau próximos aos angolanos por caminhos diferentes, porém informados por tradições ancestrais muito próximas.
É isso, camaradas, no final das contas, no ngolo, na kandeka, no berimbau, no ritmo e na vocalização da música angolana percebemos claramente a ancestralidade africana de algumas manifestações culturais centrais do Brasil. Esse documentário, exibido na véspera do dia 20 de Novembro mostrou bem que por mais branco que qualquer brasileiro seja, ele possui uma alma que é bem negra.
 Um abraço a todos,
                                     Moreno

domingo, abril 07, 2013

Nacional e Bella Vista

Começo de uma tarde linda em Montevidéu: céu azul, sol brilhando, 15 graus à sombra e uns 25 ao sol. As águas do Rio da Prata não recebem banhistas. Devem estar muito frias e apenas alguns surfistas com roupas de borracha pegam suas pequenas ondas. Fiquei sabendo pelo taxista que o Nacional ia jogar hoje no Centenário às 3, mas tinha marcado de almoçar com um amigo. Á uma e meia, hora combinada, telefono para seu quarto de hotel: não irá. Problemas de digestão. O campo está livre para um almoço rápido o suficiente para pegar o começo do jogo com o Bella Vista -- nem sabia que esse time existia.

Comprei um ingresso para a platea america, sem saber bem onde e como eram os lugares: apenas desconfiei um pouco quando o vendedor da bilheteria me perguntou para confirmar: "Abajo?" -- "Sí." Respondi sem pensar. Acabei parando na geral do estádio, cadeiras de cimento situadas um pouco acima do nível do campo. O sol das três batia em cheio tanto na platea quanto nas tribunas -- como são chamadas as arquibancadas aqui na banda oriental. A sensação de calor misturada com a decepção de não poder ter uma boa visão do campo quase me fizeram sair para comprar uma entrada na tribuna américa, que estava logo atrás e acima de mim. Mas o jogo já estava para começar e resolvi ficar por ali mesmo.

Não me arrependi.  Assistir a um jogo no nível do campo pode não te dar a melhor noção de movimentação e posicionamento dos jogadores, mas proporciona uma maior intimidade com o que está rolando ali. A proximidade da platea faz com que ela comprove a humanidade dos jogadores e se identifique com ela. Longe de serem aqueles pequenos peões de xadrez que não gritam, não suam e nem se estrebucham ao se chocar com seu adversários ao disputar a bola ao longo  do tabuleiro verde, ali os camaradas são seres humanos passíveis de erros. Isso faz com que seus acertos se sobressaiam, tornando-se mais festejados. Atos de bravura e de covardia, cera, fingimentos, técnica ou grossura, oportunismo tornam-se mais inteligíveis assim.

Foi Nelson Rodrigues que escreveu que na mais comum das peladas existe a grandeza de uma tragédia grega. Foi na aula da professora Tereza Negrão que aprendi que a principal diferença que Aristóteles via entre a comédia e a tragédia era que, na primeira, as pessoas envolvidas eram tidas como inferiores ao espectador, e por isso se podia rir de suas desgraças. Na segunda, os sofrimentos apresentados no palco abatiam pessoas que a platéia via como estando a seu nível ou acima dele, por isso sofriam junto com eles e podiam refletir sobre suas existências a partir do espetáculo.

Pois assim foi: Nacional e Bella Vista apresentariam para meus olhos um espetáculo humano na campo de jogo porque estávamos eu e os jogadores compartilhando um mesmo nível: o da platea do Estádio Centenário. E isso tudo aconteceu por acaso. 

4 a 3 para o Nacional, num jogo em que o Bella Vista fez 2 a 0 logo nos primeiros 20 minutos. O primeiro, um bonito gol que nasceu a partir de um contra-ataque e de uma boa troca de passes dentro da área do Nacional. O segundo, aconteceu depois que Recoba, o figurão do time,  perdeu uma bola no meio de campo. A partir daí,o Nacional prevaleceu no jogo apesar de o Bella Vista chegar com perigo algumas vezes.

Mas essa crônica não é para descrever o jogo. Passo a outro pequeno ponto que não poderia deixar de registrar: também fazia parte do mesmo espetáculo a hinchada do Nacional: seria o candombe aquele ritmo que batucavam e cantavam com a ajuda de um trompete que fazia os contratempos de jazz de Nova Orleans? Nós brasileiros nos achamos o umbigo do mundo quando se trata de carnaval e cultura da diáspora africana e não prestamos atenção em coisas que estão aqui do nosso lado. Os cantos de guerra da hinchada me pareceram uma criativa combinação entre marchinhas carnavalescas, axé music e jazz de Nova Orleans. Mas com certeza eram outra coisa que não tudo isso.

É só isso: um pequeno relato de uma ensolarada tarde de domingo passada em Montevidéu sob um céu azul e um sol amarelo e vibrante como os da bandeira uruguaia. 

quinta-feira, julho 26, 2012

Banguela e benguela

Camaradas, definitivamente separei esses últimos dias para dar meu pitaco sobre assuntos que envolvem os toques de berimbau da capoeira regional. Hoje, vou dar minha opinião sobre a interpretação que o Grupo Abadá fez do toque de benguela.

Antes de começar a falar especificamente do toque, vou escrever um pouco sobre o que creio ter sido o motivo de sua interpretação e divulgação por aquele grupo. Ora, é notório para quem viveu no meio da capoeira no fim dos anos 80 e início dos 90, que houve uma forte disputa por espaço entre os vários grupos de capeira no Brasil, e o critério para se julgar qual o melhor dentre eles passava pela "eficiência" dos seus respectivos estilos. Tal eficiência seria provada nas rodas pelo uso da violência contra o companheiro de jogo, visto como adversário e não como um camarada. Foi nesse contexto que o termo saroba adquiriu o significado de capoeirista ineficiente, cujos golpes não obedecem aos critérios de objetividade necessários para se obter a vitória na roda. (Para uma explicação mais aprofundada do significado desse termo, indico minha postagem "O que diabos é saroba?", publicada há alguns anos nesse blog).

Creio que, daqueles tempos para cá, a lógica de competição entre os grupos mudou sutilmente: com a reemergência da capoeira angola, com a crescente perda de prestígio dos estilos de capoeira identificados com a regional -- por causa da violência nas rodas -- e com a demarcação territorial estabilizada entre os grupos, eficiência e violência começam a perder terreno como balizador da competição entre as organizações de capoeira. A ludicidade volta a ser valorizada e aí um novo estilo de jogo precisa ser criado pelos mega-grupos em competição. O Cordão de Ouro surgiu com o miudinho e o Abadá com a ressurreição da benguela. Ambos, segundo os respectivos mestres-executivos de cada grupo, apoiados na tradição.

Assim, a estilização tanto do toque de benguela quanto de um tipo de jogo associado a ele vêm sendo promovidos pelo Abadá há alguns anos. Isso acabou correspondendo a anseios do "mercado capoeirístico": uma maior ludicidade dentro do campo da "regional-contemporânea" e uma resposta à competição contra os grupos de capoeira angola.

Vamos então tratar especificamente do toque banguela ou benguela -- essa última denominação sendo a preferida pelo grupo Abadá: em comparação com a interpretação feita por esse grupo, a versão original, de mestre Bimba, trabalha com mais recursos do berimbau: há mais sutilezas no afastamento ou na aproximação da cabaça do corpo do tocador e no uso da aproximação da pedra enquanto o arame ainda está vibrando, o que, deixemos bem claro, consiste num toque de sonoridade diferente do semi-preso. Além disso, mestre Bimba varia muito tanto os repiques quanto as terminações do toque: por exemplo, em vários momentos da gravação, o toque termina com uma presa e em outros, em duas presas.

Na verdade, quem escuta a banguela de mestre Bimba fica meio sem saber qual é o toque "puro", sem os repiques. Para mim, o toque não tem uma estilização clara. É isso que abre caminho para que, na sua interpretação, os seguidores de mestre Camisa selecionem a terminação em duas presas como o padrão. Isso não deixa de ser um empobrecimento com relação ao estilo criado por mestre Bimba, mas está baseado numa terminação que ocorre muito frequentemente na gravação que consta no disco do Curso de Capoeira Regional.

Porém, mais importante que a estilização da terminação do toque é o esquecimento das sutilezas características do estilo do berimbau de mestre Bimba em benefício da sua "higienização": o trabalho de afastamento-aproximação da cabaça e a utilização do chiado praticamente desaparecem. Aqui, é necessário dizer que a "sujeira" do toque de mestre Bimba, ou seja, a profusão de chiados -- favorecida pelo arame menos tensionado no berimbau grave -- e de efeitos com a cabaça, não são apenas um "charme" do mestre, mas parte essencial do estilo musical que ele criou.

Acontece que, para padronizar o toque tornando-o mais fácil e mais adaptado ao gosto de um público de capoeira não acostumado à sonoridade demasiado afro-baiana e rústica do berimbau, Camisa acabou "higienizando-o". A higienização do toque aparece também na própria mudança de seu nome -- de banguela para benguela -- que seria o efeito da correção do português "errado" falado por mestre Bimba, o que denota também o preconceito mobilizado por Camisa contra seu mestre. Sendo assim, minha hipótese é que, ao estilizar seu toque de benguela, Mestre Camisa evitou manter aquelas peculiaridades excessivamente regionais da Regional, contraproducentes para a expansão do grupo tanto no mercado globalizado como no mercado nacional -- cada vez mais urbanos -- não-acostumados à rusticidade da forma de Manoel dos Reis Machado manejar o arco musical.

Por outro lado, é necessário admitir que poucos grupos de capoeira contemporâneos conseguem manter a rusticidade do berimbau proposta por mestre Bimba. É por isso que vejo a aversão que muitos mestres de capoeira e alguns ex-alunos de mestre Bimba nutrem contra a estilização feita pelo Abadá não apenas como uma defesa da riqueza do toque criado pelo mestre, mas também como uma defesa de seu prestígio e de seu nicho de mercado contra o projeto expansionista daquele grupo, que continua sendo muito agressivo.

Pois o Abadá não é o único grupo que tem o projeto de transformar a capoeira num bem cultural transnacional, mas é o que o faz de forma mais específica, combinando o modelo de franquia, a concentração de poder material e simbólico na pessoa de um mestre, uma ideologia da eficiência e uma violência simbólica enorme contra outros estilos de capoeira, criando o que a estudiosa portuguesa Ana Jaqueira identificou como um projeto colonialista mundial.

É isso aí. Um forte abraço aos leitores.

Adriano "Moreno"


segunda-feira, julho 23, 2012

Mestre Bimba e mestre Cabecinha: uma pré-história da capoeira regional?

Camaradas, há algumas semanas venho escutando o programa de rádio Barracão da Cultura, transmitido pela Cultura FM 100,9 aqui de Brasília todos os sábados de 10h a meio dia, apresentado pelo Miojo, com o apoio do Cadete. Aliás, recomendo fortemente o programa aos capoeiristas da nossa cidade.
Pois bem, há dois sábados -- e justamente no dia da entrevista do mestre Pombo de Ouro -- o programa colocou no ar uma gravação de mestre Bimba datada de 1940 de cuja existência eu já tinha ouvido falar mas que nunca tinha escutado: nela, o mestre canta as cantigas da capoeira regional acompanhado por um berimbau que soa como se tocasse São Bento Grande de Angola (que a partir desse ponto do texto passa a ser substituído pela abreviatura SBA). Foi o camarada Cego lá de Palmas/TO que me indicou o link para o blog que possibilita baixar o disco inteiro. É este aqui: http://voltanomundocapoeira.blogspot.com.br/2009/07/mestre-cabecinha-e-mestre-bimba-1940.html. Nesse blog, ficamos sabendo que dois grandes pesquisadores estadunidenses estudiosos das culturas afro-americanas passaram por Salvador entre 1940 e 1941 e fizeram gravações com os mestres Bimba e Cabecinha.
Nessas gravações, mestre Bimba canta várias quadras e corridos com a entonação e o ritmo que já conhecemos do disco "Curso de Capoeira Regional" -- mas com uma diferença: o toque do berimbau não é o da regional, mas algo que soa muito próximo ao SBA. É para esse fato que eu gostaria de chamar atenção nessa postagem e a partir dele apresentar a seguinte hipótese: a criação do toque de São Bento Grande da Regional (a partir daqui SBR) é um processo que ainda não estaria completo no começo dos anos 1940. Além disso, arrisco afirmar que esse processo teria como ponto de partida a adaptação do SBA ao ritmo e ao estilo das quadras e corridos tal como eram cantados por mestre Bimba.
Camaradas, à primeira vista, o berimbau da gravação parece tocar um SBA aceleradíssimo. Porém, se vocês escutarem atentamente vão perceber que, em 1940, mestre Bimba tende a transformar as duas semi-presas do SBA (tch tch dim dom dom) em uma só (tch dim dom dom) -- "comendo" um pequeno intervalo de tempo do toque. E isso não acontece só porque cantasse mais rápido, mas principalmente por querer criar uma atmosfera mais belicosa nas rodas que mestrava. De fato, a supressão de um toque chiado ajusta o SBA à entonação e ao tempo da voz de Manoel dos Reis Machado, bem como ao pandeiro que a acompanha, criando uma "quebrada" no ritmo -- ausente no SBA -- resultando em um toque mais seco que evoca um jogo mais duro.
Ao mesmo tempo, essa variação do toque valoriza o chiado que o arame faz quando dele aproximamos a pedra, apresentando-se aqui uma característica do berimbau da capoeira regional: a valorização da semi-presa e do chiado emitido pela aproximação da pedra ao arame folgado do berimbau grave. Assim, o que se escuta nessa gravação é uma espécie de proto-SBR. A minha hipótese é a de que mestre Bimba desenvolve seu toque mais característico a partir dessa inadequação do SBA ao seu estilo de canto.
Ou seja, podemos afirmar que a capoeira regional ainda estava em processo de construção nos anos 40 do século XX, pois uma de suas principais características -- os toques de berimbau -- ainda não tinha sido formatada pelo seu criador. Na verdade, talvez seja possível dizer que o próprio toque SBA não tivesse ainda adqurido uma forma fechada, possibilitando a sua interpretação por mestre Bimba.
Outra observação importante pode ser feita a partir das gravações: o formato e a entonação das cantigas e mesmo os toques de berimbau de mestre Cabecinha são muito semelhantes aos de mestre Bimba. Segundo a apresentação feita no início de cada gravação, ficamos sabendo que o grupo de mestre Cabecinha chamava-se "Esperança Angola", o que o coloca na categoria "angoleiro"-- que, na época, abarcava todos os mestres que não tinham aderido à cademia de mestre Bimba. Mas não custa nada perguntar das relações entre os dois: teriam desenvolvido essas semelhanças por acaso? ou mestravam alguma roda juntos? foram alunos do mítico e lendário Bentinho?
Sobre esse assunto, ficamos apenas no campo da especulação, mas gosto de levantar essas dúvidas para combater a idéia de que mestre Bimba teria criado a capoeira regional a partir de uma idéia genial que lhe teria vindo pronta e acabada e de que, portanto, ela não teria uma história. Essa concepção da completude da Regional serve muito às disputas por espaço e prestígio no campo da capoeira, mas prejudica o entendimento do fenômeno humano que compreende a sua sistematização.
Um abraço a todos,

Adriano "Moreno"