O Ngolo finalmente documentado!
Camaradas, acabo de retornar de Cachoeira no Recôncavo
Baiano, região que aparece no imaginário de todo o capoeirista como local
mítico de origem do samba de roda, da capoeira e do maculelê. Pois bem, a
cidade situada às margens do Rio Paraguaçu sediou o I Congresso Internacional
de Pesquisadores de Capoeira, evento simplesmente fenomenal, de altíssimo
nível. Muitos dos mais importantes pesquisadores de capoeira estiveram
presentes: Liberac Pires, Líbano Soares, Júlio César Tavares, Luiz Renato
Vieira, Mattias Assunção, César Barbieri (que, inclusive, citou o mestre Pombo
de Ouro em sua palestra), Janja Araújo e outros não tão conhecidos.
Gostei muito das palestras do Líbano Soares e da mestra
Janja, mas não vou aborrecer vocês com questões políticas e teóricas sobre a
capoeira. A razão de eu estar escrevendo aqui tem a ver com a projeção de
estréia do documentário "Jogo de corpo" feita durante o encontro.
Mattias Assunção e Mestre Cobrinha Mansa simplesmente foram ao sul de Angola e
finalmente conseguiram não só encontrar como também filmar as lutas africanas
do ngolo e da kandeka.
Para aqueles que estão entrando agora no mundo da
capoeira, é preciso contar uma pequena história para explicar a minha
empolgação: há mais ou menos 50 anos um pintor angolano em visita a Salvador disse a mestre Pastinha
que existia uma luta/dança na África que provavelmente estava na origem da
capoeira, o ngolo ou dança da zebra, dançada durante um ritual de passagem das
moças de uma determinada etnia do sul de seu país. Como sempre acontece no
mundo da capoeira, essa história entrou no ambiente das disputas simbólicas
referentes à origem da brincadeira: africana, brasileira ou crioula a depender
de grupos e de projetos políticos-identitários. O fato é que nunca ninguém
havia filmado o ngolo ou a kandeka e a existência delas sempre ficou num
terreno muito disputado. É claro que as controvérsias sobre o tema não vão
acabar e as disputas referentes ao peso relativo dado aos desenvolvimentos
crioulos ou africanos na capoeira nunca serão esgotadas.
Foi muito emocionante ver no documentário que o balanço de corpo e os
tapas da kandeka têm muito a ver com a ginga e as negaças dos antigos
batuqueiros cariocas. Já o ngolo é uma luta/dança em que imperam os chutes e a ginga. Ambas não possuem nem cabeçadas nem rasteiras. O ngolo é realmente praticado pelos homens --
todo mundo bebum, gente! -- durante a cerimônia que marca a passagem das
meninas do grupo à vida adulta. Não tem instrumentos musicais, mas estão todos
em círculo batendo palmas e cantando. Por outro lado, a kandeka parece não
estar ligada a alguma cerimônia especial, pelo menos na Angola dos dias de
hoje, mas é acompanhada por tambores, palmas e cantos.
Segundo Mattias Assunção, autor de um estudo recente que dá conta do
estado da arte do que se escreveu até hoje sobre capoeira, não
se pode dizer que o ngolo seria a origem da brincadeira, até porque outras
formas de danças ou lutas devem ter existido ou ainda existir em outras regiões
da África -- não necessariamente de cultura banto, como o ngolo e a kandeka -- cujos praticantes vieram parar no Brasil. Isso para
não se falar dos desenvolvimentos que aconteceram em território brasileiro
durante a crioulização da capoeira. Porém, não se pode negar o parentesco muito
próximo que existe entre suas técnicas corporais.
Além de ser corporal e físico, tal parentesco é, também, musical. No filme tive a oportunidade de escutar o berimbau como é tocado no sul de Angola: sua caixa de
ressonância não é a cabaça, mas a boca do tocador e o arame ou um entrelaçado
de cipós bem finos servem como corda. E como são atados de forma bem frouxa às
extremidades da verga, o som que fazem é muito, mas muito próximo daquele do
berimbau de mestre Bimba. Por outro lado, ao escutar a entonação e a voz de
alguns dos cantadores – descontando-se que as letras estão em línguas como quimbundo,
ambundo, ovimbundo ou chokwe – pensamos ouvir mestre João Grande.
É claro que também no campo musical é muito complicado
falar de origens, até porque todas essas formas de cantar, de tocar o berimbau
e de jogar a kandeka ou o ngolo também se modificaram durante a história
angolana, marcada pela guerra civil até bem recentemente; e em dias mais atuais pela modernização caótica, acelerada e extremamente desigual. É muito possível
que os mestres Bimba e João Grande tenham chegado a vocalizações, afinações e
toques de berimbau próximos aos angolanos por caminhos diferentes, porém
informados por tradições ancestrais muito próximas.
É isso, camaradas, no final das contas, no ngolo, na
kandeka, no berimbau, no ritmo e na vocalização da música angolana percebemos
claramente a ancestralidade africana de algumas manifestações culturais
centrais do Brasil. Esse documentário, exibido na véspera do dia 20 de Novembro
mostrou bem que por mais branco que qualquer brasileiro seja, ele possui uma alma
que é bem negra.
Um abraço a
todos,
Moreno
1 Comments:
Camaradas, devo pedir desculpas por um erro na postagem. Na verdade, o ngolo já tinha sido descrito por outros pesquisadores que não Assunção e Cobrinha Mansa. Uma simples olhada na wikipedia mostra isso. Acontece que fiquei muito empolgado porque foi a primeira vez que vi imagens daquela que ficou na minha cabeça -- e também na de muitos capoeiristas -- como sendo a origem da brincadeira.
Um abraço,
Moreno
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