quinta-feira, abril 19, 2007

Pílulas sobre a tradição

Camaradas, a última postagem provocou alguns comentários interessantes. Alguns gostaram por ela ter abordado a "descaracterização" da capoeira regional. Para esses, o jogo de iúna e o toque de mesmo nome vêm de uma tradição que deveria ser respeitada e mantida imutável.
Outros comentários tiveram um certo tom de gozação e diziam mais ou menos o seguinte: "De que me interessa saber uma coisa que não tem nada a ver com a capoeira praticada no ambiente e na época em que vivo?" Ou, "não tenho compromisso com a tradição, ela é um fardo, uma camisa de força que impede a liberdade de interpretação da brincadeira".
De fato, essa questão é importante: por que a iúna não pode ser reinterpretada? Seu criador não foi ele mesmo um grande intérprete das tradições afro-brasileiras?
Não sou um defensor da imutabilidade, sei que as modificações da tradição da regional têm uma razão de ser. Por exemplo, a relação mestre-discípulo pautada pela "pedagogia do africano" tem mais a ver com sociedades não-industriais. Não tem muito como se perpetuar na atmosfera de ensino de capoeira em academias onde o mestre não é mais o detentor de um saber tradicional, mas alguém que tem a obrigação de nos ensinar porque estamos pagando e que tem de sair correndo para dar outra aula por que, afinal de contas, o cara precisa ganhar a vida.
Entendo que, nessa realidade, se as rodas funcionassem no esquema de o mestre indicar as duplas e as compras, não iria dar tempo de todos os alunos jogarem. E, como hoje em dia não estamos mais acostumados a esperar por nada, o que ia acontecer era a insatisfação generalizada dos alunos.
Até aí tudo bem. Não podemos voltar no tempo. Mas, hoje em dia, as rodas mais disputadas tendem para a desorganização justamente por isso: os camaradas compram o jogo a cada segundo, não deixando a brincadeira da dupla se desenvolver, não se esperando mais do berimbau aquele papel de organizador da roda que, segundo os mais antigos e conforme está escrito nos livros, ele teve.
Porém, para corrigir esse aspecto -- e outros -- das rodas atuais não é preciso viajar ao passado. A maioria dos grupos de capoeira angola que existem hoje não permite ou restringe ao máximo a compra de jogo. É já assisti a rodas aqui em Brasília onde aquela tradicional fila de camaradas agachados para jogar etornou-se enorme, pois a compra não era permitida. Isso parece ter a ver também com uma questão de organização interna de cada grupo.
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Já ouvi alguns mestres mais antigos ironizarem muito a adoção das "trancinhas", ou dread locks por parte dos capoeiristas. Alguns dizem que, se o "bicho pegar" numa roda, fica fácil puxar o cabelo do camarada e lhe dar uma joelhada, por exemplo. Pode até ser, mas não dá para ignorar o simbolismo das tranças na capoeira e na cultura pop hoje em dia: a valorização da herança africana.
O uso de tranças por parte de capoeiristas negros -- e até brancos -- é comum hoje em dia, a ponto de uma postura como aquela ser considerada conservadora ao extremo. Até o mestre Nenel, filho do mestre Bimba, usa "dreads".
Mas o mais interessante nisso é que, no contexto de globalização da capoeira, até o significado desse tipo de penteado pode ser interpretado pelo dono do cabelo. Sei de um camarada polonês que veio dar aulas da brincadeira no Brasil e que fez dread locks. Talvez isso mostre a profundidade do seu comprometimento com o jogo, a ponto de deixar o seu país de origem e escolher viver em outro, a capoeira tendo cumprido um papel importante nessa migração.
Nesse caso, as tranças seriam uma manifestação muito interessante de identificação desse camarada com o brinquedo e, através dele, com a própria cultura brasileira.

quinta-feira, abril 05, 2007

Sobre a iúna

Camaradas, retomando o assunto das interpretações que os grupos atuais fazem da capoeira regional, escrevo sobre a iúna.
Como todos sabemos, a iúna era o jogo exclusivo dos formados de mestre Bimba. Durante a sua realização, eles deviam soltar os balões da cintrua desprezada, mostrando o entrosamento obtido durante anos de treinamento. Tal jogo era regido pelo toque de mesmo nome e vinha sempre depois do jogo de São Bento Grande da Regional.
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Parênteses:
Uma característica importante das rodas do mestre Bimba é que era ele quem escolhia a dupla que iria jogar. Esse detalhe é interessante, pois mostra que Manoel dos Reis Machado não deixava a roda “rolar solta”, havendo um critério para a formação dos pares. Nessa hora, há relatos de que o mestre considerava até o temperamento dos alunos, de modo que um camarada mais adiantado jogava com outro, iniciante; ou que um aluno muito afobado e violento nunca jogaria com um discípulo inexperiente. Um jogo mais duro era permitido entre alunos mais adiantados e a compra de jogo não era praxe ou só acontecia a mando do mestre e se não houvesse um número par de alunos.
Essa observação do aluno por inteiro -- não só de sua técnica, mas também de seu temperamento -- parece ter a ver com a tradicional “pedagogia do africano”, onde a relação mestre-aluno era muito valorizada, aquele sendo responsável pela transmissão do que se reputava como um ensinamento ancestral.
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Assim, o jogo de iúna acontecia no final da roda e as duplas eram compostas por alunos formados, também escolhidos pelo mestre e que geralmente formavam duplas fixas de treinamento. Havia a obrigatoriedade de se soltar os balões da cintura desprezada. Não havia canto e nem palmas e só havia um berimbau e um pandeiro a tocar, como manda a regional.
O nome do toque é tirado de um pássaro brasileiro que, acreditava-se, possuía poderes mágicos. Seria composto de duas partes: uma simbolizaria o canto da iúna macho e a outra a resposta da iúna fêmea. Chega a lembrar aquela concepção pastiniana da capoeira positiva e combativa e da capoeira negativa e defensiva.
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Recentemente, fiquei sabendo que existe um toque de viola caipira chamado iúna. Teria alguma coisa a ver com o toque da capoeira? Será que a coincidência de nomes por si só não mostraria a absorção de elementos da cultura popular pela cultura afro-brasileira?
Cada vez sei menos coisas sobre capoeira...
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Hoje em dia, talvez por ter nascido associado à maestria, o toque de iúna marca um momento especial e solene de uma roda. Alguns grupos começam sua brincadeira com tal toque, acompanhado por palmas mas sem canto e utilizando os três berimbaus. Segundo eles, é um ritual para lembrar dos velhos mestres da vadiação.
Também já presenciei a iúna ser tocada em funerais e missas de corpo presente de mestres falecidos. Recentemente, houve uma “roda fúnebre” aqui em Brasília, aberta com iúna.
Outros grupos aproveitam-se do fato de o toque de iúna ter sido criado para dar ensejo a um jogo plástico, e acabam utilizando-o para reger um jogo de apresentação individual durante suas exibições. Assim, durante o toque de iúna apenas um capoeirista realiza movimentos acrobáticos no centro da roda ao som dos berimbaus. Sem canto mas com palmas.
Em outras adaptações, aproveita-se que o toque está associado ao jogo dos alunos formados por mestre Bimba, executando-se o mesmo quando da formatura de um contra-mestre. Não existe a obrigatoriedade dos balões, o jogo deve ter movimentos acrobáticos e prezar a plasticidade. Também só jogam os mestres do grupo.
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É isso aí. Para terminar, lembro que minha intenção ao descrever as adaptações não tem a ver com determinar o que é o certo ou o que é o errado. Procuro apenas mostrar como os grupos contemporâneos reinterpretam as tradições inventadas na época das primeiras sistematizações do brinquedo. É claro que tais adaptações correspondem a realidades e épocas diferentes, tendo sua razão de ser, devendo existir várias outras por esse mundo afora.