quarta-feira, abril 30, 2008

Degeneração de uma certa angola?

Há algum tempo, li uma ótima biografia do mestre Bimba que dizia que a regional tinha sido uma reação do mestre a "uma certa capoeira angola" que estava se degenerando. Essa afirmação parece ter sido adotada também no recente documentário sobre mestre Bimba: o batuque e a capoeira baiana tradicional estavam em decadência e o mestre Bimba acabou modernizando-os e salvando-os do esquecimento e da extinção.
Ora, recentemente estudiosos vêm argumentando que a capoeira regional do mestre Bimba estava inserida numa realidade muito mais ampla do que a do Recôncavo Baiano: dialogava com o projeto carioca da Ginástica Nacional e, em última instância, estava ligada à expansão do esporte moderno pelo mundo.
Não nos enganemos, o esporte moderno é uma invenção recente, data da Inglaterra do final do século XVIII, pois foi lá que esportes populares tradicionais receberam regras: a caça à raposa, o cricket, o boxe, o futebol, o rugbi são produtos da sistematização levada a cabo pelas camadas mais ricas daquele país. O rugby e o futebol tiveram suas regras estabelecidas em meados do século XIX nas escolas burguesas de Rugby, Enton e outras. Estava implícita nesses projetos uma tentativa de "civilização" e "higienização" dessas atividades tradicionais. Tais esportes deveriam formar uma classe de homens viris e autoconfiantes, capazes de dirigir o país e suas colônias.
Essa obsessão pela higienização dos esportes tradicionais chegou ao Brasil no começo do século XX e foi aplicada à capoeira. Existem vários escritos, como os de Melo de Morais Filho e os de Aníbal Burlamaqui, citados por Líbano Soares na Capoeira Escrava, defendendo a criação de um esporte nacional. Tal esporte não poderia ser afro, deveria fazer parte de um projeto higienista, eugenista e embranquecedor do brasileiro.
É nesse contexto que o discurso da degeneração da vadiação baiana em presepada precisa ser enxergado. A vadiação tradicional praticada pela camadas populares nos intervalos de trabalho no porto, nos largos das igrejas nos dias de festa e nas reuniões de domingo ao lado dos botequins não se aplicava bem à idéia de um esporte genuinamente nacional.
A ginástica nacional dos mestres cariocas Zuma e Sinhozinho de Ipanema, sistematizada nos anos 1920 seguia essa linha higienista mais pronunciada. A capoeira regional do mestre Bimba segue uma linha diversa, mas influenciada por aquela outra, dado que tanto ele como seus alunos conheciam as regras sistematizadas por Zuma e compartilhavam, em alguma medida, do desejo de esportivização. O contato dos universitários de origem burguesa com mestre Bimba gerou um produto híbrido, uma concepção afro e popular de esporte que traçaria os rumos do desenvolvimento futuro da brincadeira.
Um abraço a todos,

Adriano "Moreno"

segunda-feira, abril 07, 2008

Ossos do ofício

O presente artigo vai na linha da postagem anterior. Nesse fim de semana, houve um evento aqui em Brasília do qual participaram alguns camaradas de Palmas-TO. Depois de uma oficina e uma palestra, eu e aqueles camaradas fomos fazer um 'papoeira', regado com alguns copos de cerveja. Talvez um pouco incomodado com a postura meio arrogante do palestrante que acabara de falar-- um estudioso cujos dotes capoeirísticos ele colocava em dúvida -- um dos colegas levantou a seguinte idéia: "Em última instância, o capoeirista vale pelo seu jogo, não existe respeito entre dois capoeiristas se o jogo dos dois não se equivale dentro da roda".
Surgiu daí um debate interessante, pois os outros membros da mesa começaram a relativizar essa noção. É claro que o prestígio de um capoeirista é construído principalmente dentro da roda, mas suas relações fora dela importam muito. O fato de um mestre ou professor ter um trabalho importante e possuir contatos dentro do meio capoeirístico (ou até de fora dele: o acesso ao poder público ou ao financiamento privado, por exemplo) faz com que seu nome seja mais respeitado no nosso meio.
De fato, parece que a partir de um determinado momento, entrar numa roda de capoeira deixa de ser somente diversão e passa a ser também meio de estabelecer vínculos profissionais e de "fazer um nome" dentro do ambiente da vadiação. Daí a importância que a freqüência a batizados e formaturas adquiri para mestres, professores e graduados que ambicionam fazer carreira.