sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Um pouco sobre João da Baiana

Antes do carnaval, terminei de ler uma entrevista que José Ramos Tinhorão (talvez o mais importante pesquisador da música popular brasileira) fez com o sambista João da Baiana (1887- 1974). Nunca é demais lembrar a importância desse entrevistado na formação do que hoje chamamos de cultura nacional: além de ter sido contemporâneo e muito próximo -- por amizade, ou até por inimizade -- de Donga, Pixinguinha e Sinhô na formatação do samba como gênero musical, tomou parte na efervescência cultural que a cidade do Rio de Janeiro vivia no começo do século XX.

Trabalhou no porto, foi guarda-costas de importantes políticos da antiga capital federal, era membro de cordões e ranchos carnavalescos, participava das festas na casa das tias baianas onde aconteciam cerimônias religiosas, rodas de partido alto e rodas de capoeira (também chamadas de rodas de batuque). Dançava nos chamados "cordões de velhos", espécie de bloco carnavalesco formado por homens vestidos com imensas cabeças de velho, cuja coreografia exigia velocidade, habilidade e destreza com os pés -- o que fez com que seus passos tomassem parte das técnicas corporais que os malandros cariocas utilizavam na capoeira. Inclusive, outra forma de se referir à capoeira nessa época era "dança de velhos". Ou seja, era um indivíduo que estava imerso no meio social e cultural das classes populares cariocas onde a capoeira e seus movimentos eram praticados como folguedo ou mesmo como uma forma de autodefesa.

Não viveu o período do auge da capoeiragem no Rio de Janeiro, pois as maltas foram desmanteladas à força logo depois golpe militar republicano de 1889, portanto antes de João da Baiana ter-se tornado adulto. Porém, foi contemporâneo de Zuma e Sinhozinho, formatadores da ginástica nacional, e também dos mestres baianos Bimba e Pastinha, formatadores da capoeira que jogamos nos dias de hoje.

Menciono essa entrevista porque creio que ela pode ajudar-nos a perceber o cenário que se apresentava à capoeira no início do século passado, para ser mais exato, ali pelos anos 20. No Rio de Janeiro daquela época, parece que às técnicas corporais da capoeiragem carioca se apresentavam duas possiblidades -- não-excludentes -- de desenvolvimento: serem adaptadas para transformarem-se em uma luta de ringue ou serem aproveitadas como passos de dança na proteção das portas-bandeiras nos desfiles das recém-criadas escolas de samba.

Assim, enquanto Zuma e Sinhozinho tratavam de sistematizar uma ginástica nacional baseada na capoeiragem sem a participação dos praticantes de origem afro e popular, João da Baiana, um dos expoentes da "dança de velhos", ainda executava os passos que dariam origem ao bailado do mestre-sala a que assistimos hoje pela tv nas madrugadas de carnaval. Bacana saber que a capoeiragem carioca não se extinguiu de todo.

Um abraço aos capoeiristas e foliões de todo o mundo!


terça-feira, fevereiro 07, 2012

Recôncavo ou recôndito

Mestre Pombo de Ouro sempre nos conta uma história engraçada sobre a forma como uma antiga aluna manifestou o alto apreço que sentia por ele:" Mestre, o senhor mora no recôncavo do meu coração!" -- e o mestre, sempre muito espirituoso, teria corrigido a moça, dizendo -- "Não seria recôndito, minha filha?".

De minha parte, sempre achei que o "erro" na declaração de apreço da aluna continha algo mais profundo, que só agora percebi: no universo simbólico da capoeira, o Recôncavo Baiano ocupa um lugar mítico, pois foi ali que se originou algo que reputamos não só como uma luta ou um folguedo, mas como uma visão de mundo que se manifesta através do corpo. Sendo assim, a substituição de recôndito por recôncavo é um ato falho que demonstra toda a adoração que essa moça sentia pelo mestre: ela liga sua admiração e respeito a um lugar de imenso valor simbólico para o praticante de capoeira.

Mas queria também chamar atenção nessa postagem para o fato de que nossos sentimentos são também historicamente construídos. A moça não disse, por exemplo: " Mestre, o senhor ocupa uma lapa do meu coração." Para os capoeiristas de hoje, a Lapa carioca possui uma força simbólica menor que a do Recôncavo. Isso chama a nossa atenção para o fenômeno do apagamento da memória da capoeira carioca, referido pela socióloga Letícia Reis e pelo estudioso André Lacê.

E hoje isso é ponto pacífico nos estudos de capoeira: houve, sim, uma disputa entre os modelos baiano e carioca, disputa na qual o primeiro levou vantagem sobre o segundo -- seja por estar organicamente vinculado à fonte de vitalidade que era a cultura popular de Salvador, seja por ter estado em condições de lidar melhor com diversos contextos culturais e assim ter se adaptado às várias exigências que lhe faziam: ser um esporte nacional, ser uma manifestação folclórica, ser um folguedo ou (nos anos 60) ser uma forma de a própria classe média carioca procurar autenticidade e liberdade num momento marcado pelo autoritarismo, e por aí vai.