segunda-feira, novembro 16, 2009

Quanta pretensão, Moreno!

Acho que minha postagem anterior se preocupou muito com os elementos negativos -- e minoritários -- de "Besouro", deixando de lado os aspectos positivos. Pois bem, esta postagem vai tentar reparar esse erro comentando alguns dos vários momentos do filme que fazem de Besouro uma realização muito acima da média.

Para começar, a cena inicial de mestre Alípio conversando com Besouro marca a intenção do filme. O velho mestre fala:"Nem a ciência cosegue explicar porque esse bicho voa." Ora, para mim, isso funciona no filme de duas maneiras: primeiro, liga a capoeira de Besouro a uma força da sobrenatural, acima da explicação humana, o que se confirma depois com a preparação de Besouro feita pelos Orixás, entes divinos. Segundo, é como que um aviso à platéia: aqui não se trata de ciência, mas de mito e fábula; pois é impossível separar o Besouro "real" do Besouro herói mitológico.

É claro que a morte de mestre Alípio corresponde à chamada do herói para a ação que aparece no manual de Christopher Vogler, mas isso não é nenhum demérito do filme, pelo contrário, mostra que o roterista está preocupado em fazer com que a saga universal do herói, presente em todas as civilizações em todas as épocas, ressoe em "Besouro". E isso foi muito bem feito. O que chama Besouro à ação é a necessidade de ele se redimir perante os outros e a si mesmo pela falha na defesa de seu mestre. A cena da morte do mestre nos braços de Besouro também é a cena em que Besouro é escolhido seu sucessor, o que aumenta sua responsabilidade.

Após isso, Besouro se isola na mata para aprender e refletir sobre suas ações, para se transmutar no líder de seu povo. Essa parece ser a fase em que o herói está na "barriga da baleia", no casulo onde se prepara a sua metamorfose de indivíduo comum para um ser mitológico.

A cena em que o pescador tem sua perna quebrada pelos homens de Noca de Antônia também é muito significativa: ele se torna incapaz de jogar capoeira e de defender seu povo. Seu entrevero com Exu, que ocorreu depois de ele ter pisado num despacho, vai mostrar também que ele não tem a simpatia do orixá, algo essencial para alguém que quisesse substituir mestre Alípio.

Após refletir na mata, Besouro recebe uma mensagem de mestre Alípio dizendo que ele está pronto para encontrar seu guia na missão. É aí que Besouro se encontra com Exu na feira. Esse encontro é muito significativo, pois Exu tem uma proximidade muito grande com a capoeira. A luta entre Besouro e Exu é muito bem feita. E aí eu tenho de me retratar: representa sim um drama, como nos filmes de kung fu que lhe servem de inspiração. Mas continuo não gostando da representação do orixá, por ser muito óbvia, greco-romana.

A derrota de Besouro e o reconhecimento de Exu como seu guia, completado no momento em que o herói se ajoelha ao pés da divindade, marca o momento final da preparação do herói. O fornecimento dos super-poderes pelos Orixás e o recebimento da guia de Ogum completa a preparação. Segundo Vogler, esse momento em que o herói recebe a espada, a arma especial, a poção mágica ou o amuleto que o torna invencível é recorrente no mito do herói. Mais uma vez o arquétipo está presente em Besouro, e muito bem trabalhado pelo diretor.

Na traição de Quero-Quero causada por ciúmes de Dinorá também há uma ressonância do mito. Ora, quem de nós não conhece a história clássica do amigo-que-trai-seu companheiro-e-o-entrega-aos-inimigos-que-o-matam; com essa morte transformando-se em sacrifício mas com a memória do morto continuando a viver sendo uma inspiração para seu povo? Não parece Judas e Jesus? Ou seja, Besouro trabalha com aspectos de uma estrutura narrativa que cativa as pessoas há pelo menos dois mil anos!

Assim, a luta entre Quero-Quero e Besouro não deixa de ser uma vingança do herói, mas é, principalemtne, o momento em que ele mostra a sua superioridade moral, já que ele poupa o ex-amigo. Aqui cabe outra retratação: o modo como a luta foi filmada é impressionante: muito boa a coreografia, com destaque para a parte em que eles lutam em cima das árvores. O drama que se desenrola tem que ver com a inveja e o ciúme de Quero-Quero por ter perdido dinorá e por Besouro ter se transformado num líder.

Aliás, o jogo apaixonado entre Besouro e Dinorá também é muito bom e dramatiza o amor dos dois personagens. A chamada de angola é filmada como se fosse uma valsa dançada pelo casal apaixonado. Assim, parece mesmo que o filme tentou -- e conseguiu -- filmar a capoeira sob um novo olhar.

Por fim, as encarnações de Besouro depois de morto mostram como o sacrifício do herói não foi em vão. Segundo Vogler, faz parte do arquétipo do herói a vitória sobre a morte por meio da superação de desafios perigosíssimos ou por meio da sobrevivência da sua memória entre seu povo. E as cenas em que Besouro encarna o corpo de seus amigos para que eles lutem contra as injustiças raciais são fantásticas e se coadunam muito bem com as religiões afro-brasileiras, que são, afinal, cultos de possessão.

Como ponto fraco do filme, continuo a destacar as telas escritas que situam a história num lugar muito determinado no tempo e no espaço, bem como fazem o mito decair citando datas pontuais como 1924, 1937, 1953. Ora, o mito não tem idade nem lugar, o que torna essa localização muito minuciosa desnecessária. Getúlio Vargas e sua legalização da capoeira só fazem desvalorizar o mito. Afinal de contas, Getúlio era só um homem.

É isso aí. Aqueles que acompanham as minhas postagens devem estar pensando: "Esse cara é um maluco esquizofrênico, num intervalo de poucos dias escreveu duas críticas contraditórias sobre o mesmo filme." Pois é, percebi que tenho um "espírito de porco" muito desenvolvido que tende a achar ruins muitos desenvolvimentos recentes que têm que ver com a capoeira. Talvez por ter lido um pouco sobre o brinquedo, começo a achar que sou dono dele. Coitado de mim! Quanta pretensão! Só espero que continuem a existir leitores do blog que me façam "baixar a bola" um pouco mais.

Um abraço a todos,
Adriano

quarta-feira, novembro 11, 2009

Besouro, o filme

Fui ver ontem o "Besouro" e gostei do filme. Não se trata de uma biografia do personagem histórico, mas sim de uma tentativa de se fazer um filme de herói a partir de um personagem mítico do universo afro-brasileiro. Assim, o filme não tem muita coisa que ver com a pequena biografia que o historiador Liberac Pires escreveu sobre o Besouro. Na verdade, ele se baseia no romance de ficção "Feijoada no paraíso", de Marco Carvalho.

Isso explica o fato de o filme estar mais ligado ao imaginário popular sobre Besouro. Aí, ele é o herói cujos poderes lhe foram oferecidos pelos orixás, o exímio capoeirista de corpo fechado que lutava contra as injustiças sociais e o racismo. Também é necessário dizer que essa imagem não foi criada somente pela cultura popular. A identificação de Besouro como um campeão das causas sociais pelo pensamento de setores da esquerda brasileira nos anos 60, além da própria expansão da prática da capoeira, contribuíram para a divulgação e o acolhimento desse mito pelas várias camadas sociais do Brasil e do mundo.

O filme traz ressonâncias do "faroeste italiano" e dos modernos filmes de "kung fu", o que em si não significa boa ou má qualidade da história. Pude identificar muitos ingredientes que funcionam em filmes de heróis: a demarcação nítida, sem zonas cinzentas entre o bem e o mal; a construção do herói depois de os vilões assassinarem uma pessoa importante para ele e seu grupo social; a missão de defender um povo ingênuo e atrasado que não possui coragem de lutar; o aprendizado da luta com um mestre. A origem sobrenatural de seu poder e a transformação do herói em inspiração de auto-confiança e coragem para seu povo após sua morte em sacrifício são outros ingredientes heróicos. É claro que não faltam um antagonista; um amigo traidor que revela o ponto fraco do herói e um par romântico.

Alguns críticos apontam que alguns ingredientes dessa fórmula poderiam ser mais bem trabalhados, como uma luta final mais aguerrida entre Besouro e o Coronel e uma maior quantidade de cenas de luta, que deveriam ser mostradas como um drama coreografado, tal como nos filmes atuais de kung fu. Me pergunto se isso não aconteceu porque o cinema ainda não desenvolveu um modo inovador de se filmar a capoeira.

Acho que eu teria certa relutância em aceitar um filme de capoeira seguindo as receitas do cinemão. Mas parece mesmo faltar uma filmagem empolgante da capoeira no cinema. Deveria o filme se inspirar no jogo entre Nestor Capoeira e Camisa em "Cordão de Ouro" ou em Lázaro Ramos no "Madame Satã"? O curioso é que já existem ótimas narrações de jogo escritas por cronistas-capoeiristas, como Nestor Capoeira, Itapoã e até por um capoeirista estadunidense, o Greg Downey, todas enfatizando a malícia e as reviravoltas do jogo. Também existem algumas cantigas de desafio que fazem aflorar a tensão nas rodas em que são cantadas. Mas creio que transpor essa atmosfera para a telona, fugindo do exotismo deve ser "outros quinhentos".

Concordo com as críticas que acharam desnecessárias a voz de fundo de Milton Gonçalves e as telas escritas -- do tipo: "Recôncavo Baiano, 1924 - a escravidão foi abolida mas os negros continuam a ser tratados como escravos" ou "a capoeira foi legalizada em 1953"(sic). Elas pecam por serem muito didáticas, pois a platéia pode facilmente deduzir isso a partir das imagens. E mais, já que o filme é sobre o mito, e o tempo mítico está fora da história, a saga de Besouro não precisaria ser situada. Colocar o nascimento do herói mítico de um povo ao lado do ato mundano de reconhecimento da capoeira por Getúlio Vargas é privar a história de sua dimensão mágica. É a desvalorização do mito.

Também pecam por didatismo alguns diálogos, como o de Exu com Besouro na feira. Achei fantástica a aparição do orixá "trickster" no ambiente ao qual ele pertence, que é o mercado, onde acontece a comunicação entre os homens, os entendimentos e desentendimentos; onde se abre a possibilidade de enganar, ser enganado ou entrar em acordo. Mas Exu não precisava anunciar quem era: mesmo quem não conhece a mitologia do candomblé saberia que aquele ser era sobrenatural. Talvez a causa desse didatismo seja a intenção de tornar Besouro mais inteligível para um mercado de não-capoeiristas brasileiros e estrangeiros. Mas isso não justifica pressupor a ignorância de um público habituado a assisitir filmes de aventura desde a infância.

Também gostei muito das cenas que utilizam o ponto de vista da primeira pessoa (não sei expressar isso em termos de cinema) para dar a noção que Besouro encarnou no corpo de animais. Outro aspecto que me agradou foi a escolha do ator principal, pois além de estar muito bem no papel, ele é a cara do mestre Bimba quando jovem. E isso, para quem é capoeirista, reforça a característica mitológica do fime: pensamos estar assisitindo à reencarnação de Besouro e de Bimba num mesmo personagem. Arrepiante!

Em resumo, o resultado geral é bom, apesar de alguns tropeços que talvez tenham a ver com a dificuldade de adaptação de um tema do imaginário popular afro-brasileiro ao padrão da cultura pop internacional e com o pequeno desenvolvimento de técnicas de filmagem que façam justiça à capoeira.

Logo a seguir, cito os link para algumas críticas especializadas ao fime.

http://www.omelete.com.br/cine/100023119/Critica__Besouro.aspx
http://cinema.cineclick.uol.com.br/criticas/ficha/filme/besouro/id/2272
http://mnemoteca.blogspot.com/2009/10/critica-besouro-se-esquiva-das.html
http://www.cafecompop.com/2009/11/critica-de-filme-besouro-2009/

Um abraço a todos,
Adriano