Quanta pretensão, Moreno!
Acho que minha postagem anterior se preocupou muito com os elementos negativos -- e minoritários -- de "Besouro", deixando de lado os aspectos positivos. Pois bem, esta postagem vai tentar reparar esse erro comentando alguns dos vários momentos do filme que fazem de Besouro uma realização muito acima da média.
Para começar, a cena inicial de mestre Alípio conversando com Besouro marca a intenção do filme. O velho mestre fala:"Nem a ciência cosegue explicar porque esse bicho voa." Ora, para mim, isso funciona no filme de duas maneiras: primeiro, liga a capoeira de Besouro a uma força da sobrenatural, acima da explicação humana, o que se confirma depois com a preparação de Besouro feita pelos Orixás, entes divinos. Segundo, é como que um aviso à platéia: aqui não se trata de ciência, mas de mito e fábula; pois é impossível separar o Besouro "real" do Besouro herói mitológico.
É claro que a morte de mestre Alípio corresponde à chamada do herói para a ação que aparece no manual de Christopher Vogler, mas isso não é nenhum demérito do filme, pelo contrário, mostra que o roterista está preocupado em fazer com que a saga universal do herói, presente em todas as civilizações em todas as épocas, ressoe em "Besouro". E isso foi muito bem feito. O que chama Besouro à ação é a necessidade de ele se redimir perante os outros e a si mesmo pela falha na defesa de seu mestre. A cena da morte do mestre nos braços de Besouro também é a cena em que Besouro é escolhido seu sucessor, o que aumenta sua responsabilidade.
Após isso, Besouro se isola na mata para aprender e refletir sobre suas ações, para se transmutar no líder de seu povo. Essa parece ser a fase em que o herói está na "barriga da baleia", no casulo onde se prepara a sua metamorfose de indivíduo comum para um ser mitológico.
A cena em que o pescador tem sua perna quebrada pelos homens de Noca de Antônia também é muito significativa: ele se torna incapaz de jogar capoeira e de defender seu povo. Seu entrevero com Exu, que ocorreu depois de ele ter pisado num despacho, vai mostrar também que ele não tem a simpatia do orixá, algo essencial para alguém que quisesse substituir mestre Alípio.
Após refletir na mata, Besouro recebe uma mensagem de mestre Alípio dizendo que ele está pronto para encontrar seu guia na missão. É aí que Besouro se encontra com Exu na feira. Esse encontro é muito significativo, pois Exu tem uma proximidade muito grande com a capoeira. A luta entre Besouro e Exu é muito bem feita. E aí eu tenho de me retratar: representa sim um drama, como nos filmes de kung fu que lhe servem de inspiração. Mas continuo não gostando da representação do orixá, por ser muito óbvia, greco-romana.
A derrota de Besouro e o reconhecimento de Exu como seu guia, completado no momento em que o herói se ajoelha ao pés da divindade, marca o momento final da preparação do herói. O fornecimento dos super-poderes pelos Orixás e o recebimento da guia de Ogum completa a preparação. Segundo Vogler, esse momento em que o herói recebe a espada, a arma especial, a poção mágica ou o amuleto que o torna invencível é recorrente no mito do herói. Mais uma vez o arquétipo está presente em Besouro, e muito bem trabalhado pelo diretor.
Na traição de Quero-Quero causada por ciúmes de Dinorá também há uma ressonância do mito. Ora, quem de nós não conhece a história clássica do amigo-que-trai-seu companheiro-e-o-entrega-aos-inimigos-que-o-matam; com essa morte transformando-se em sacrifício mas com a memória do morto continuando a viver sendo uma inspiração para seu povo? Não parece Judas e Jesus? Ou seja, Besouro trabalha com aspectos de uma estrutura narrativa que cativa as pessoas há pelo menos dois mil anos!
Assim, a luta entre Quero-Quero e Besouro não deixa de ser uma vingança do herói, mas é, principalemtne, o momento em que ele mostra a sua superioridade moral, já que ele poupa o ex-amigo. Aqui cabe outra retratação: o modo como a luta foi filmada é impressionante: muito boa a coreografia, com destaque para a parte em que eles lutam em cima das árvores. O drama que se desenrola tem que ver com a inveja e o ciúme de Quero-Quero por ter perdido dinorá e por Besouro ter se transformado num líder.
Aliás, o jogo apaixonado entre Besouro e Dinorá também é muito bom e dramatiza o amor dos dois personagens. A chamada de angola é filmada como se fosse uma valsa dançada pelo casal apaixonado. Assim, parece mesmo que o filme tentou -- e conseguiu -- filmar a capoeira sob um novo olhar.
Por fim, as encarnações de Besouro depois de morto mostram como o sacrifício do herói não foi em vão. Segundo Vogler, faz parte do arquétipo do herói a vitória sobre a morte por meio da superação de desafios perigosíssimos ou por meio da sobrevivência da sua memória entre seu povo. E as cenas em que Besouro encarna o corpo de seus amigos para que eles lutem contra as injustiças raciais são fantásticas e se coadunam muito bem com as religiões afro-brasileiras, que são, afinal, cultos de possessão.
Como ponto fraco do filme, continuo a destacar as telas escritas que situam a história num lugar muito determinado no tempo e no espaço, bem como fazem o mito decair citando datas pontuais como 1924, 1937, 1953. Ora, o mito não tem idade nem lugar, o que torna essa localização muito minuciosa desnecessária. Getúlio Vargas e sua legalização da capoeira só fazem desvalorizar o mito. Afinal de contas, Getúlio era só um homem.
É isso aí. Aqueles que acompanham as minhas postagens devem estar pensando: "Esse cara é um maluco esquizofrênico, num intervalo de poucos dias escreveu duas críticas contraditórias sobre o mesmo filme." Pois é, percebi que tenho um "espírito de porco" muito desenvolvido que tende a achar ruins muitos desenvolvimentos recentes que têm que ver com a capoeira. Talvez por ter lido um pouco sobre o brinquedo, começo a achar que sou dono dele. Coitado de mim! Quanta pretensão! Só espero que continuem a existir leitores do blog que me façam "baixar a bola" um pouco mais.
Um abraço a todos,
Adriano
Para começar, a cena inicial de mestre Alípio conversando com Besouro marca a intenção do filme. O velho mestre fala:"Nem a ciência cosegue explicar porque esse bicho voa." Ora, para mim, isso funciona no filme de duas maneiras: primeiro, liga a capoeira de Besouro a uma força da sobrenatural, acima da explicação humana, o que se confirma depois com a preparação de Besouro feita pelos Orixás, entes divinos. Segundo, é como que um aviso à platéia: aqui não se trata de ciência, mas de mito e fábula; pois é impossível separar o Besouro "real" do Besouro herói mitológico.
É claro que a morte de mestre Alípio corresponde à chamada do herói para a ação que aparece no manual de Christopher Vogler, mas isso não é nenhum demérito do filme, pelo contrário, mostra que o roterista está preocupado em fazer com que a saga universal do herói, presente em todas as civilizações em todas as épocas, ressoe em "Besouro". E isso foi muito bem feito. O que chama Besouro à ação é a necessidade de ele se redimir perante os outros e a si mesmo pela falha na defesa de seu mestre. A cena da morte do mestre nos braços de Besouro também é a cena em que Besouro é escolhido seu sucessor, o que aumenta sua responsabilidade.
Após isso, Besouro se isola na mata para aprender e refletir sobre suas ações, para se transmutar no líder de seu povo. Essa parece ser a fase em que o herói está na "barriga da baleia", no casulo onde se prepara a sua metamorfose de indivíduo comum para um ser mitológico.
A cena em que o pescador tem sua perna quebrada pelos homens de Noca de Antônia também é muito significativa: ele se torna incapaz de jogar capoeira e de defender seu povo. Seu entrevero com Exu, que ocorreu depois de ele ter pisado num despacho, vai mostrar também que ele não tem a simpatia do orixá, algo essencial para alguém que quisesse substituir mestre Alípio.
Após refletir na mata, Besouro recebe uma mensagem de mestre Alípio dizendo que ele está pronto para encontrar seu guia na missão. É aí que Besouro se encontra com Exu na feira. Esse encontro é muito significativo, pois Exu tem uma proximidade muito grande com a capoeira. A luta entre Besouro e Exu é muito bem feita. E aí eu tenho de me retratar: representa sim um drama, como nos filmes de kung fu que lhe servem de inspiração. Mas continuo não gostando da representação do orixá, por ser muito óbvia, greco-romana.
A derrota de Besouro e o reconhecimento de Exu como seu guia, completado no momento em que o herói se ajoelha ao pés da divindade, marca o momento final da preparação do herói. O fornecimento dos super-poderes pelos Orixás e o recebimento da guia de Ogum completa a preparação. Segundo Vogler, esse momento em que o herói recebe a espada, a arma especial, a poção mágica ou o amuleto que o torna invencível é recorrente no mito do herói. Mais uma vez o arquétipo está presente em Besouro, e muito bem trabalhado pelo diretor.
Na traição de Quero-Quero causada por ciúmes de Dinorá também há uma ressonância do mito. Ora, quem de nós não conhece a história clássica do amigo-que-trai-seu companheiro-e-o-entrega-aos-inimigos-que-o-matam; com essa morte transformando-se em sacrifício mas com a memória do morto continuando a viver sendo uma inspiração para seu povo? Não parece Judas e Jesus? Ou seja, Besouro trabalha com aspectos de uma estrutura narrativa que cativa as pessoas há pelo menos dois mil anos!
Assim, a luta entre Quero-Quero e Besouro não deixa de ser uma vingança do herói, mas é, principalemtne, o momento em que ele mostra a sua superioridade moral, já que ele poupa o ex-amigo. Aqui cabe outra retratação: o modo como a luta foi filmada é impressionante: muito boa a coreografia, com destaque para a parte em que eles lutam em cima das árvores. O drama que se desenrola tem que ver com a inveja e o ciúme de Quero-Quero por ter perdido dinorá e por Besouro ter se transformado num líder.
Aliás, o jogo apaixonado entre Besouro e Dinorá também é muito bom e dramatiza o amor dos dois personagens. A chamada de angola é filmada como se fosse uma valsa dançada pelo casal apaixonado. Assim, parece mesmo que o filme tentou -- e conseguiu -- filmar a capoeira sob um novo olhar.
Por fim, as encarnações de Besouro depois de morto mostram como o sacrifício do herói não foi em vão. Segundo Vogler, faz parte do arquétipo do herói a vitória sobre a morte por meio da superação de desafios perigosíssimos ou por meio da sobrevivência da sua memória entre seu povo. E as cenas em que Besouro encarna o corpo de seus amigos para que eles lutem contra as injustiças raciais são fantásticas e se coadunam muito bem com as religiões afro-brasileiras, que são, afinal, cultos de possessão.
Como ponto fraco do filme, continuo a destacar as telas escritas que situam a história num lugar muito determinado no tempo e no espaço, bem como fazem o mito decair citando datas pontuais como 1924, 1937, 1953. Ora, o mito não tem idade nem lugar, o que torna essa localização muito minuciosa desnecessária. Getúlio Vargas e sua legalização da capoeira só fazem desvalorizar o mito. Afinal de contas, Getúlio era só um homem.
É isso aí. Aqueles que acompanham as minhas postagens devem estar pensando: "Esse cara é um maluco esquizofrênico, num intervalo de poucos dias escreveu duas críticas contraditórias sobre o mesmo filme." Pois é, percebi que tenho um "espírito de porco" muito desenvolvido que tende a achar ruins muitos desenvolvimentos recentes que têm que ver com a capoeira. Talvez por ter lido um pouco sobre o brinquedo, começo a achar que sou dono dele. Coitado de mim! Quanta pretensão! Só espero que continuem a existir leitores do blog que me façam "baixar a bola" um pouco mais.
Um abraço a todos,
Adriano
1 Comments:
Assisti ontem na TV a cabo o "Madame Satã", do diretor Karim Aïnouz. É muito mais nuançado do que Besouro no tratamento do "herói". Besouro é um herói menos complicado, fácil de se idolatrar: um homem negro que luta contra a exploração dos negros no Brasil e cujo legado está vivo através da capoeira.
Já Satã é tratado de forma muito mais sutil: um malandro homossexual de temperamento imprevisível que oscila entre a ternura e a violência e que joga capoeira.
Se compararmos as figuras históricas de Besouro de Madame Satã, vamos perceber que ambos viviam em universos muito semelhantes: o mundo da malandragem, situado nas brechas entre ordem e desordem. Porém, Besouro foi traduzido para o cinema de forma muito mais palatável que Madame Satã.
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