sexta-feira, maio 15, 2009

Capoeira Regional: geração espontânea? (2ª parte)



É claro que tanto a concepção de esporte de Bimba quanto a de Pastinha foram interpretações singulares da concepção elitista de esporte nas quais se inspirava o projeto da Ginástica Nacional de Zuma. Basta ler os escritos de Pastinha e os testemunhos dos alunos de Bimba para percebermos isso.

O projeto da Ginástica Nacional tinha que ver com a formação de jovens de corpos sãos e mentes sãs. Esse projeto distanciava a capoeiragem carioca das suas origens afro-brasileiras, mas era nacionalista. Tinha o objetivo de criar uma ginástica brasileira, em contraposição com a sueca e a francesa, tendo o boxe inglês como modelo. A capoeira teria a função eugênica, higienista e civilizatória de melhorar o físico e o psíquico do povo brasileiro, tornando-o saudável e confiante nas suas capacidades e formando uma geração que colocaria o país no rol das nações civilizadas e desenvolvidas. É importante salientar que, subordinado ao ideal de progresso civilizatório, estava presente nesse projeto uma valorização indireta do malandro e do mestiço brasileiros como os inventores da luta.

Essa função da capoeira como projeto civilizatório também está, em algum grau, contemplada nas sistematizações de Bimba e Pastinha. Ambos se utilizaram da brecha aberta pelo projeto da ginástica brasileira para obterem o reconhecimento da arte que praticavam. Porém, em suas escolas aquela idéia convivia – contraditoriamente, até -- com visões de mundo do universo afro-brasileiro e popular próprias do meio cultural em que viviam aqueles mestres. Assim, os dois projetos baianos de capoeira foram produtos culturais híbridos. Neles, o negro não era apenas o inventor, mas a fonte da visão de mundo que explicava o brinquedo.

Assim, podemos dizer que a visão de mundo da capoeira regional é muito marcada pela idéia de que o perigo pode estar à espreita em todos os lugares; por isso o capoeirista teria de estar em estado de permanente prontidão, ou seja, ele deveria ser capaz de intuir e antecipar, de maneira quase mística, os perigos que se apresentam tanto dentro quanto fora da roda de capoeira. Essa prontidão era maliciosa, pois nas palavras do mestre Bimba, “capoeira é maldade”. Desenvolvendo a faculdade da prontidão, o capoeirista estaria sempre preparado para lidar com qualquer cilada que encontrasse, pois saberia se defender de maneira que sempre sairia em vantagem. Encontrei muitas referências à prontidão nas parábolas do mestre Bimba citadas pelo Dr. Decânio.

Já a visão da capoeira pastiniana parece ter a ver com o fluir de duas forças contraditórias que formam o mundo, pois a capoeira seria negativa e positiva, mas ao mesmo tempo, “tudo o que a boca come”. O contínuo fluir desses opostos explicaria tanto os movimentos dos capoeiras dentro da roda como as ações humanas fora dela. Nessa visão da brincadeira, aparecem as ambigüidades: a cooperação e a traição, a camaradagem e a malícia, já que no universo afro quem come “tudo o que a boca come” é Exu, o orixá tradutor e traidor que se encarrega da comunicação entre os homens e os deuses; responsável pelos desentendimentos e ciladas que encontramos na roda da vida e na roda de capoeira.

É claro que essas concepções de capoeira foram reinterpretadas de muitas maneiras. Nos anos 60, o surgimento da regional-senzala. Nos anos 80, a volta da capoeira angola. Nos anos 90, a resposta dos megagrupos. Tudo isso articulado com a permanência de estilos locais e com a internacionalização do brinquedo. Na verdade, a capoeira parece ultrapassar qualquer concepção que seus praticantes elaboram sobre ela. Nenhuma delas a explica definitivamente nem esgota futuras interpretações.


Adriano "Moreno"

3 Comments:

Blogger Moreno capoeira said...

Lembrar que ambas as sistematizações foram ressignificações modernas da vadiação baiana. Nesse sentido, ambas foram "progressistas". Pego emprestadas as palavras de Luiz Renato Vieira, que escreveu que a Regional foi um "ajustamento do relógio da capoeira", e amplio também para a Angola.

9:53 PM  
Blogger Unknown said...

Olá, muito bom seu texto, o convido a fazer parte da nossa comunidade no orkut Mestre Pastinha aonde estamos sempre trocando informações e com isso crescendo! Qualquer coisa me escreve amxa74@gmail.com

Abs, Artur, Ilê de Angola, Niterói, RJ.

1:20 PM  
Blogger Moreno capoeira said...

Interessante também lembrar que a famosa frase de mestre Pastinha -- "Capoeira é tudo o que a boca come" -- guarda uma ambigüidade enorme: sua filosofia ascética da capoeira se exprime através dos termos do candomblé, mas o mestre não parece querer misturar as duas coisas. Ele mobiliza conceitos antigos para exprimir uma realidade nova, a da institucionalização do brinquedo. Um exemplo do "pensamento de fronteira" de Bhabha.

4:59 PM  

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