Besouro, o filme
Fui ver ontem o "Besouro" e gostei do filme. Não se trata de uma biografia do personagem histórico, mas sim de uma tentativa de se fazer um filme de herói a partir de um personagem mítico do universo afro-brasileiro. Assim, o filme não tem muita coisa que ver com a pequena biografia que o historiador Liberac Pires escreveu sobre o Besouro. Na verdade, ele se baseia no romance de ficção "Feijoada no paraíso", de Marco Carvalho.
Isso explica o fato de o filme estar mais ligado ao imaginário popular sobre Besouro. Aí, ele é o herói cujos poderes lhe foram oferecidos pelos orixás, o exímio capoeirista de corpo fechado que lutava contra as injustiças sociais e o racismo. Também é necessário dizer que essa imagem não foi criada somente pela cultura popular. A identificação de Besouro como um campeão das causas sociais pelo pensamento de setores da esquerda brasileira nos anos 60, além da própria expansão da prática da capoeira, contribuíram para a divulgação e o acolhimento desse mito pelas várias camadas sociais do Brasil e do mundo.
O filme traz ressonâncias do "faroeste italiano" e dos modernos filmes de "kung fu", o que em si não significa boa ou má qualidade da história. Pude identificar muitos ingredientes que funcionam em filmes de heróis: a demarcação nítida, sem zonas cinzentas entre o bem e o mal; a construção do herói depois de os vilões assassinarem uma pessoa importante para ele e seu grupo social; a missão de defender um povo ingênuo e atrasado que não possui coragem de lutar; o aprendizado da luta com um mestre. A origem sobrenatural de seu poder e a transformação do herói em inspiração de auto-confiança e coragem para seu povo após sua morte em sacrifício são outros ingredientes heróicos. É claro que não faltam um antagonista; um amigo traidor que revela o ponto fraco do herói e um par romântico.
Alguns críticos apontam que alguns ingredientes dessa fórmula poderiam ser mais bem trabalhados, como uma luta final mais aguerrida entre Besouro e o Coronel e uma maior quantidade de cenas de luta, que deveriam ser mostradas como um drama coreografado, tal como nos filmes atuais de kung fu. Me pergunto se isso não aconteceu porque o cinema ainda não desenvolveu um modo inovador de se filmar a capoeira.
Acho que eu teria certa relutância em aceitar um filme de capoeira seguindo as receitas do cinemão. Mas parece mesmo faltar uma filmagem empolgante da capoeira no cinema. Deveria o filme se inspirar no jogo entre Nestor Capoeira e Camisa em "Cordão de Ouro" ou em Lázaro Ramos no "Madame Satã"? O curioso é que já existem ótimas narrações de jogo escritas por cronistas-capoeiristas, como Nestor Capoeira, Itapoã e até por um capoeirista estadunidense, o Greg Downey, todas enfatizando a malícia e as reviravoltas do jogo. Também existem algumas cantigas de desafio que fazem aflorar a tensão nas rodas em que são cantadas. Mas creio que transpor essa atmosfera para a telona, fugindo do exotismo deve ser "outros quinhentos".
Concordo com as críticas que acharam desnecessárias a voz de fundo de Milton Gonçalves e as telas escritas -- do tipo: "Recôncavo Baiano, 1924 - a escravidão foi abolida mas os negros continuam a ser tratados como escravos" ou "a capoeira foi legalizada em 1953"(sic). Elas pecam por serem muito didáticas, pois a platéia pode facilmente deduzir isso a partir das imagens. E mais, já que o filme é sobre o mito, e o tempo mítico está fora da história, a saga de Besouro não precisaria ser situada. Colocar o nascimento do herói mítico de um povo ao lado do ato mundano de reconhecimento da capoeira por Getúlio Vargas é privar a história de sua dimensão mágica. É a desvalorização do mito.
Também pecam por didatismo alguns diálogos, como o de Exu com Besouro na feira. Achei fantástica a aparição do orixá "trickster" no ambiente ao qual ele pertence, que é o mercado, onde acontece a comunicação entre os homens, os entendimentos e desentendimentos; onde se abre a possibilidade de enganar, ser enganado ou entrar em acordo. Mas Exu não precisava anunciar quem era: mesmo quem não conhece a mitologia do candomblé saberia que aquele ser era sobrenatural. Talvez a causa desse didatismo seja a intenção de tornar Besouro mais inteligível para um mercado de não-capoeiristas brasileiros e estrangeiros. Mas isso não justifica pressupor a ignorância de um público habituado a assisitir filmes de aventura desde a infância.
Também gostei muito das cenas que utilizam o ponto de vista da primeira pessoa (não sei expressar isso em termos de cinema) para dar a noção que Besouro encarnou no corpo de animais. Outro aspecto que me agradou foi a escolha do ator principal, pois além de estar muito bem no papel, ele é a cara do mestre Bimba quando jovem. E isso, para quem é capoeirista, reforça a característica mitológica do fime: pensamos estar assisitindo à reencarnação de Besouro e de Bimba num mesmo personagem. Arrepiante!
Em resumo, o resultado geral é bom, apesar de alguns tropeços que talvez tenham a ver com a dificuldade de adaptação de um tema do imaginário popular afro-brasileiro ao padrão da cultura pop internacional e com o pequeno desenvolvimento de técnicas de filmagem que façam justiça à capoeira.
Logo a seguir, cito os link para algumas críticas especializadas ao fime.
http://www.omelete.com.br/cine/100023119/Critica__Besouro.aspx
http://cinema.cineclick.uol.com.br/criticas/ficha/filme/besouro/id/2272
http://mnemoteca.blogspot.com/2009/10/critica-besouro-se-esquiva-das.html
http://www.cafecompop.com/2009/11/critica-de-filme-besouro-2009/
Um abraço a todos,
Adriano
Isso explica o fato de o filme estar mais ligado ao imaginário popular sobre Besouro. Aí, ele é o herói cujos poderes lhe foram oferecidos pelos orixás, o exímio capoeirista de corpo fechado que lutava contra as injustiças sociais e o racismo. Também é necessário dizer que essa imagem não foi criada somente pela cultura popular. A identificação de Besouro como um campeão das causas sociais pelo pensamento de setores da esquerda brasileira nos anos 60, além da própria expansão da prática da capoeira, contribuíram para a divulgação e o acolhimento desse mito pelas várias camadas sociais do Brasil e do mundo.
O filme traz ressonâncias do "faroeste italiano" e dos modernos filmes de "kung fu", o que em si não significa boa ou má qualidade da história. Pude identificar muitos ingredientes que funcionam em filmes de heróis: a demarcação nítida, sem zonas cinzentas entre o bem e o mal; a construção do herói depois de os vilões assassinarem uma pessoa importante para ele e seu grupo social; a missão de defender um povo ingênuo e atrasado que não possui coragem de lutar; o aprendizado da luta com um mestre. A origem sobrenatural de seu poder e a transformação do herói em inspiração de auto-confiança e coragem para seu povo após sua morte em sacrifício são outros ingredientes heróicos. É claro que não faltam um antagonista; um amigo traidor que revela o ponto fraco do herói e um par romântico.
Alguns críticos apontam que alguns ingredientes dessa fórmula poderiam ser mais bem trabalhados, como uma luta final mais aguerrida entre Besouro e o Coronel e uma maior quantidade de cenas de luta, que deveriam ser mostradas como um drama coreografado, tal como nos filmes atuais de kung fu. Me pergunto se isso não aconteceu porque o cinema ainda não desenvolveu um modo inovador de se filmar a capoeira.
Acho que eu teria certa relutância em aceitar um filme de capoeira seguindo as receitas do cinemão. Mas parece mesmo faltar uma filmagem empolgante da capoeira no cinema. Deveria o filme se inspirar no jogo entre Nestor Capoeira e Camisa em "Cordão de Ouro" ou em Lázaro Ramos no "Madame Satã"? O curioso é que já existem ótimas narrações de jogo escritas por cronistas-capoeiristas, como Nestor Capoeira, Itapoã e até por um capoeirista estadunidense, o Greg Downey, todas enfatizando a malícia e as reviravoltas do jogo. Também existem algumas cantigas de desafio que fazem aflorar a tensão nas rodas em que são cantadas. Mas creio que transpor essa atmosfera para a telona, fugindo do exotismo deve ser "outros quinhentos".
Concordo com as críticas que acharam desnecessárias a voz de fundo de Milton Gonçalves e as telas escritas -- do tipo: "Recôncavo Baiano, 1924 - a escravidão foi abolida mas os negros continuam a ser tratados como escravos" ou "a capoeira foi legalizada em 1953"(sic). Elas pecam por serem muito didáticas, pois a platéia pode facilmente deduzir isso a partir das imagens. E mais, já que o filme é sobre o mito, e o tempo mítico está fora da história, a saga de Besouro não precisaria ser situada. Colocar o nascimento do herói mítico de um povo ao lado do ato mundano de reconhecimento da capoeira por Getúlio Vargas é privar a história de sua dimensão mágica. É a desvalorização do mito.
Também pecam por didatismo alguns diálogos, como o de Exu com Besouro na feira. Achei fantástica a aparição do orixá "trickster" no ambiente ao qual ele pertence, que é o mercado, onde acontece a comunicação entre os homens, os entendimentos e desentendimentos; onde se abre a possibilidade de enganar, ser enganado ou entrar em acordo. Mas Exu não precisava anunciar quem era: mesmo quem não conhece a mitologia do candomblé saberia que aquele ser era sobrenatural. Talvez a causa desse didatismo seja a intenção de tornar Besouro mais inteligível para um mercado de não-capoeiristas brasileiros e estrangeiros. Mas isso não justifica pressupor a ignorância de um público habituado a assisitir filmes de aventura desde a infância.
Também gostei muito das cenas que utilizam o ponto de vista da primeira pessoa (não sei expressar isso em termos de cinema) para dar a noção que Besouro encarnou no corpo de animais. Outro aspecto que me agradou foi a escolha do ator principal, pois além de estar muito bem no papel, ele é a cara do mestre Bimba quando jovem. E isso, para quem é capoeirista, reforça a característica mitológica do fime: pensamos estar assisitindo à reencarnação de Besouro e de Bimba num mesmo personagem. Arrepiante!
Em resumo, o resultado geral é bom, apesar de alguns tropeços que talvez tenham a ver com a dificuldade de adaptação de um tema do imaginário popular afro-brasileiro ao padrão da cultura pop internacional e com o pequeno desenvolvimento de técnicas de filmagem que façam justiça à capoeira.
Logo a seguir, cito os link para algumas críticas especializadas ao fime.
http://www.omelete.com.br/cine/100023119/Critica__Besouro.aspx
http://cinema.cineclick.uol.com.br/criticas/ficha/filme/besouro/id/2272
http://mnemoteca.blogspot.com/2009/10/critica-besouro-se-esquiva-das.html
http://www.cafecompop.com/2009/11/critica-de-filme-besouro-2009/
Um abraço a todos,
Adriano
8 Comments:
Segue outro link para uma crítica:http://revistamuito.atarde.com.br/?p=3340
Uma coisa que eu esqueci de escrever e que injeta no filme uma aura ainda maior de misticismo: o ator principal é muito parecido com o mestre Bimba nos seus dias de juventude! Isso é de arrepiar pra quem é capoeirista e vê o filme.
Outra nota: discordo da forma como Exu foi representado: um homem alto, forte e dotado de poderes de luta. Seria mais condizente com sua imagem mitológica se ele se apresentasse primeiro como um homem manco, cego de um olho, muito velho, corcunda ou muito baixinho. Todas essas representações evocam a necessidade de desconfiar das aparências, porque elas são traidoras. Denotam a ausência de uma qualidade fundamental nesse mundo mas também indicam um poder que tem raízes no outro mundo. Parece que o diretor não admite uma divindade fisicamente frágil. Nem todo o deus tem que ser forte e alto como os greco-romanos. Aqui vemos um tropeço na tentativa de interpretar a mitologia das religiões afro com um filtro da cultura pop internacional.
Talvez a conclusão deva ser reformulada. A fraqueza do filme não se deve à dificuldade de adequação dos universo mítico afro-brasileiro ao padrão da culturap pop internacional, mas talvez a uma certa inabilidade do diretor em trabalhar com elas (com seus limietes e possibilidades de abertura) para contar a narrativa heróica de Besouro.
Adriano, ainda não fui ver o filme do Besouro, mas pelas entrevistas que vi o Diretor realmente só pegou a "figura" do Besouro e a partir dela colocou outros elementos diversos da nossa cultura. Mas admiro o trabalho feito (mesmo sem ainda assisti-lo) por dois motivos:
1) pelo que o próprio Diretor comentou numa entrevista concedida neste fim de semana na TVBrasil, os EUA tem milhões de filmes sobre boxe, sobre o esporte em seu país, enquanto no Brasil poucas são as mídias que tratam de um esporte nosso, genuinamente brasileiro como a capoeira.
2) Segundo a mesma entrevista, quando ele decidiu fazer o filme, entrou no universo da capoeira e estudou 4 anos sobre tudo que envolve essa nossa arte-luta, se certou de pessoas envolvidas tanto com capoeira quanto com o candomblé.
É isso...
Mas Netinha, eu gostei do filme. Na verdade, achei ele muito bom e também admirável. Talvez eu devesse ter escrito um pouco mais sobre as coisas boas dele para deixar isso mais claro. O que eu acho, no fim das contas, é que o autor podia ter trabalhado melhor com essa característica do herói lendário que foi Besouro, mas só o fato de perceber essa dimensão do mito e adaptá-la para o cinema foi fantástico e merece nota 8. Já que, como diz o mestre Pombo, 10 é a perfeição e ninguém é perfeito.
adorei o seu blog!
Analisando as formas de filmagem da capoeira de "Besouro" e de "Madame Satã", percebi que este se inspira naquelas gravuras de Kalixto-- bem conhecidas no meio da capoeira -- datadas de 1906 onde aparecem desenhos de malandros se enfrentando. Tais desenhos, além de retratarem aqueles personagens das ruas cariocas,acabam reproduzindo também algumas dos trejeitos de corpo por eles utilizados na luta da capoeira. O próprio figurino do personagem corresponde aos desenhos. O corpo de Satã não é filmado por inteiro durante as cenas de luta, mas não para disfarçar a -- improvável -- inabilidade de Lázaro Ramos na capoeira, mas para dar a idéia de rapidez e do caráter inesperado dos golpes, os quais só são percebidos pelo espectador no momento em que atingem o alvo. Em suma, o objetivo da câmera é retratar a "mandinga" na capoeria de Madame Satã.
Postar um comentário
<< Home