sexta-feira, março 31, 2006

Aula de mandinga III

Sobre a roda, é importante lembrar que é ele mesmo quem escolhe as duplas que vão jogar, como fazia o próprio mestre Bimba e segundo os critérios já expostos na postagem anterior.
Assim, e isso é outra característica importante do mestre Pombo, se o aluno é o sujeito do seu aprendizado, o mestre é o seu guia, é aquele que cria as condiçoes propícias para que aconteça o seu desenvolvimento. Isso quer dizer que, em nenhum momento o aluno está solto ou largado no treino, durante toda a aula ele realiza exercícios específicos para ele com um par determinado, tudo com supervisão do mestre.
A escolha dos pares é importante porque cria um sentimento de camaradagem entre dois alunos. Coisa que é essencial para durante as rodas haver a brincadeira, a vadiagem, um jogo mandingado porém com respeito e amizade. Isso é essencial também para a realização da cintura desprezada, pois a confiança no colega é capital para a perfeita execução dos balões.
Nunca é demais frisar que o mestre cria um ambiente em que todos os alunos se sentem responsáveis pelo aprendizado dos colegas. Como venho jogando capoeira há um certo tempo, percebo que existe uma tendência, pelo menos em mim, de irritação do aluno mais avançado para com o iniciante. Isso, devido à criação pelo mestre de um ambiente de respeito mútuo pela individualidade e pelo aprendizado do outro, é reduzido ao mínimo. A individualidade, os interesses e o ritmo de aprendizado de cada um dos colegas devem ser respeitados.
Em muitos lugares em que treinei, esse clima não existia, um viés de competição entre os alunos dominava a tendência cooperativa das aulas. E isso não é só efeito da personalidade dos alunos, mas também, e principalmente, da condução das aulas pelo professor ou mestre.
Friso novamente que é essencial o aluno sentir o comprometimento do mestre com o seu aprendizado individual, personalíssimo. Só assim o aprendiz vai se sentir seguro, livre de ansiedades quanto ao próprio aprendizado, vai sentir sua própria personalidade e seu jeito de jogar valorizados. Quantas vezes, quando iniciante, não saí de treinos pensando:"se não sirvo para jogar capoeira, também não sirvo para nada"? É esse tipo de sentimento que deve ser minimizado nos treinos de capoeira.

terça-feira, março 28, 2006

Aula de mandinga II

Conforme expus na postagem anterior, o método do mestre Pombo de Ouro recoloca o aluno como sujeito da própria aprendizagem. Aqui vão outros exemplos da atuação do mestre, seguidos dos pressupostos em que estão baseados.
É característica importante da metodologia do mestre Pombo a preocupação com um ambiente de aprendizado livre de ansiedades dos alunos quanto à sua performance e quanto à sua aceitação pelo grupo. Por exemplo, dinâmicas de grupo como pique-pega (em pé e agachado) e como troca de pares em pequenos jogos ajudam a "quebrar o gelo" dos alunos e a criar um clima propício à integração. Ele utiliza tais dinâmicas diariamente, mas aumenta sua duração quando chegam alunos novos.
A ansiedade quanto à aprendizagem é combatida de diversas formas: é ele quem escolhe as duplas de treinamento, como fazia mestre Bimba, de acordo com o nível de aprendizado e também -- e isso mostra um conhecimento e uma preocupação com seus alunos que não é comum em professores de capoeira -- conforme a personalidade e o temperamento do aluno. Dessa maneira, um aluno iniciante, porém violento e empolgado, não treina junto com outro iniciante mais pacato, mas sim com um aluno avançado -- devidamente alertado pelo mestre a não machucar o calouro.
Por outro lado, o aluno avançado tem a consciência de que ele mesmo está aprendendo capoeira ao se preocupar com o controle de seus golpes quando treina com o iniciante. O mestre vive repetindo dois ditados referentes a essa situação: "Quem sabe mais doa a quem sabe menos" e "o capoeirista deve aprender a vencer a si mesmo". Quanto a essa última frase, ele a desenvolveu nos seus estudos de esoterismo. Lembro-me de ele ter me emprestado uma revista que dizia que o objetivo maior das artes marciais é a superação da razão sobre os instintos animais do homem.
Outra forma de assegurar a integração da turma evitando a ansiedade quanto à aprendizagem é na escolha dos exercícios de cada dupla. Cada uma delas realiza um determinado exercício de golpe e contragolpe adaptado ao grau de desenvolvimento de cada aluno. Porém, se um aluno da dupla realiza os exercícios com uma dificuldade muito menor que o companheiro, o mestre muda o exercício para que aquele que sabe menos não se sinta inferiorizado. Muitas vezes ele sugere variações do mesmo exercício.
Outra preocupação do mestre é com o trabalho em pares. Como mencionei anteriormente, é ele quem forma as duplas seguindo critérios bem definidos. O mestre toma cuidado para não deixar que um aluno dê lições demais ao outro. Isso pode inferiorizar aquele que está sendo "ensinado" pelo colega. O objetivo do mestre é fazer com que o aluno aprenda com seus próprios erros, por isso não é positivo, na sua metodologia, que um aluno avançado se imponha demasiado sobre um iniciante. A direção e o ritmo do aprendizado devem ser ditados pelas aptidões de cada aluno.
Durante a roda, um certo clima de competição é incentivado, porém, dentro do contexto de integração e aceitação do outro, presente em todos os momentos da aula. Quando os alunos estão no pé do berimbau, o mestre sugere a execução de determinados golpes treinados durante a aula. Além disso, comenta o que acontece na roda com interjeições e chega a parar o jogo para dar alguns "toques" para os camaradas que estão jogando. Isso, segundo ele, serve para que aumente a consciência do aprendiz tanto sobre o próprio jogo quanto sobre o jogo do outro. Por que "capoeira", para o mestre, "é percepção".
Nas rodas, os alunos, em sua maioria, iniciantes sem contato com músicas de capoeira, são incentivados a repetir o coro, mesmo que saia desafinado ou fora do ritmo. Isso faria com que eles percebessem -- naturalmente, através da própria experiência e sem ninguém obrigando-os a responder o coro -- as qualidades necessárias para se fazer uma boa roda.
O mesmo vale para a bateria: tanto o tocador de berimbau como o pandeirista e o cantor devem perceber naturalmente as dificuldades presentes na formação de uma boa charanga e se acertarem. Isso tudo com uma intervenção mínima do mestre, ele apenas fala: "o berimbau não pode tocar na segunda, o pandeiro na terça, a palma na quarta, o canto na quinta e o coro na sexta-feira". O mestre chama atenção dos alunos para as dificuldades de cantar, tocar um instrumento, bater palma e olhar o jogo da roda tudo ao mesmo tempo. Isso seria outro treinamento de percepção e de auto-conhecimento para os alunos.
Outras "mandingas metodológicas" do mestre ainda serão expostas.

quarta-feira, março 22, 2006

Comentário sobre a biografia de Mestre Canjiquinha

Para quem se interessar, encaminho a biografia do mestre Canjiquinha. Na verdade é a transcrição de uma entrevista que ele deu a um aluno. Possui muitas características de um relato popular, com idas e vindas e coisas deixadas no ar. Vale a pena!

Canjiquinha é da geração imediatamente posterior à dos mestres Bimba e Pastinha, nasceu na década de vinte e morreu, se não me engano, em 1990. Ainda assim, aprendeu capoeira do modo tradicional. É uma leitura interessante porque tomamos conhecimento de como é que aqueles homens aprendiam e de como funcionava o mundo do que hoje chamamos de "vadiação baiana" -- por exemplo, vocês vão ver que seu mestre, como parte de uma espécie de ritual de admissão do aluno, lhe pediu uma garrafa de cachaça. Também é interessante o relato de suas primeiras aulas.

Canjiquinha não se filiou nem à escola de mestre Bimba, e nem à de Pastinha, apesar de suas origens angoleiras. Nos anos 60, já era famoso capoeirista, fazendo apresentações para turistas e participações em filmes. Entrou em desavenças com mestre Pastinha, que, segundo ele, queria monopolizar os estilos não-filiados à regional.

É ele o autor da famosa frase: " A capoeira é uma só". E ele a proferiu num contexto de disputa tanto com mestre Pastinha quanto com a capoeira regional. Não era do seu interesse a submissão a nenhum dos dois estilos, por isso, tentou desenvolver um terceiro, criando inclusive toques próprios de berimbau, como o samango ou o samba-de-angola.

Foi mestre de mestre Brasília, baiano que, juntamente com Suassuna, fundou o Cordão de Ouro, em São Paulo. Tal grupo se apropriou da idéia de que a capoeira era uma só, lançando um marco muito importante para a capoeira que se convencionou chamar de contemporânea.
Moreno

segunda-feira, março 20, 2006

Aula de mandinga

Lembro-me de que, em minha época de estudante de licenciatura em História, li um texto que dizia que ensinar não é uma ciência, mas uma arte. Assim, os comentários que se seguem não devem ser tomados como um método de ensino eficaz a ser adotado por todos aqueles que ensinam capoeira; são apenas um relato de um caso singular no mundo da brincadeira.
Já escutei muito em vários lugares onde treinei esta frase: "malícia não se ensina". Acho que os treinos do mestre Pombo desmentem essa idéia. Principalmente nos jogos com rodas pequenas acaba-se desenvolvendo a percepção e a "maldade".
Segundo caras como Nestor Capoeira, isto é o mais importante no ensino da vadiagem: o desenvolvimento da malícia. Eu concordo com ele, e também acho que tanto a parte dos golpes quanto a parte da malícia podem ser treinados, cabendo ao mestre desenvolver um tipo de aula que se destine a isso, como o mestre Pombo faz com seus alunos.
Hoje em dia, na maioria das academias o que se treina é repetição de movimentos, quase uma "aerocapoeira", pois os alunos só ficam imitando os movimentos repetidos por um professor que se posiciona na frente da sala de aula e que determina o ritmo dos exercícios. A ênfase na repetição de seqüências pré-determinadas realizadas por dois jogadores também é muito grande. Desse jeito, o treino da percepção do outro e da malícia fica prejudicado.
Os toques do mestre durante os jogos das alunos são fundamentais para desenvolver um capoeirista mandingueiro, o mestre Pombo de Ouro, assim como os mestres tradicionais o faziam, frisa muito a necessidade de perceber o movimento do outro e de enganar o camarada. Como na capoeira tradicional, ensinada aos mestres Waldemar da Paixão e Canjiquinha (ver o livro de Frede Abreu e a biografia de Canjiquinha), e provavelmente a todos da Velha Guarda.
Nesse ponto, se o método Senzala é mais eficiente para desenvolver golpes rápidos, o método tradicional é mais eficiente para criar a malícia. Estão de prova os aprendizes mais recentes do mestre Pombo de Ouro, é cada vez mais desafiador jogar com eles.
Deve-se frisar também na aula do Mestre Pombo a criação de um ambiente cooperativo entre os alunos. O fato de o mestre não ter uma postura autoritária, compartilhando seus sentimentos, suas decisões quanto ao andamento do aprendizado com os alunos é fundamental na criação desse ambiente. As atividades das aulas não são decididas apenas por ele, os alunos tendo um papel importante no seu andamento.
Isso é fundamental para criar a auto-confiança e o protagonismo no aluno. O iniciante não é visto como um ser inferior que recebe o conhecimento de um ser absolutamente superior; mas como um indivíduo que possui interesses próprios dentro e fora do mundo da capoeira, um determinado ritmo de aprendizado e um determinado jeito de soltar os golpes que devem ser respeitados por todos os outros colegas, mesmo os mais adiantados.
A cooperação entre os alunos é mais bem desenvolvida desse modo, cada um respeita o interesse do outro por se sentir respeitado de volta. Isso acontece primeiramente porque o mestre olha cada discípulo como único, comprometendo-se individualmente com cada um dos alunos e isso parece que contagia o grupo inteiro.
O aprendiz percebe, então, que a aula do mestre não tem somente que ver com capoeira, mas também, e principalmente, com a construção da própria individualidade, com encontrar seu próprio caminho na vida consciente de suas escolhas e respeitando as pessoas com quem se convive. E isso realmente não se aprende numa academia.

Moreno

sexta-feira, março 17, 2006

Uma crítica ao mito da "capoeira quilombola"

Quanto ao Cláudio Queiroz, ele é uma figura importante no meio da capoeira de Brasília. Foi um dos fundadores do Grupo Senzala nos anos 60, que ajudou a espalhar a capoeira pelo Brasil e criou um novo método de ensino da brincadeira. Já assisti a palestras em que ele relatava que, quando jovem, subia os morros do Rio em busca do ensinamento de velhos jogadores de capoeira. Também falou dos seus treinamentos de capoeira carioca na academia do mestre Sinhozinho de Ipanema e de como treinava sozinho debaixo do seu bloco em Brasília quando se mudou para cá.
No campo das idéias, ele é um entusiasta do pensamento de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, muito ufanista a respeito da mistura de raças do Brasil. Daí essa idéia de que a capoeira teria nascido nos quilombos míticos onde negros, índios e brancos pobres teriam se reunido.
Cláudio Queiroz idealiza muito os quilombos rurais brasileiros e a escravidão urbana: há algum tempo, se sabe que, nas maiores cidades do país, os escravos que conseguiam comprar sua alforria adquiriam outros escravos para si. A ideologia da escravidão acabou sendo, em determinado grau, introjetada pelos cativos -- afinal de contas, era o sistema em que viviam e no qual tinham de sobreviver. Nem sempre procuravam o conflito com o escravismo, freqüentemente negociavam dentro do sistema.
Os registros de que dispomos sobre a história da capoeira dão conta de que ela era um fenômeno urbano. Nos seus primeiros registros, estudados por Líbano Soares em "A capoeira escrava", a brincadeira aparece associada aos escravos africanos (não nascidos no Brasil) da cidade do Rio de Janeiro na primeira década do século XIX. Em Salvador, como nos informa Matias Assunção, seus primeiros registros são década de 50 do mesmo século. O que sabemos, por enquanto, é que a capoeira tem suas origens nas áreas urbanas das cidades brasileiras na primeira metade do século XIX, sendo praticada por escravos(africanos, em sua maioria, mas brasileiros também).
O pesquisador Frede Abreu, conhecido do mestre, relativizou um pouco esses achados documentais no seu último livro, escrevendo, e com razão, que as cidades brasileiras do período colonial não eram tão urbanas assim. Havia fazendas ao redor de Salvador e do Rio de Janeiro, -- que, na época, não possuíam muito mais de 100 mil habitantes -- e havia terrenos devolutos na área urbana, as famosas capoeiras. Havia também os quilombos urbanos em ambas as cidades, locais situados dentro das cidades para onde os escravos fugiam temporariamente para festejar, fazer seus cultos, dançar, e, (quem sabe?) jogar capoeira.
Aliás, há muitas menções de viajantes ao jogo de capoeira nos terrenos devolutos de ambas as cidades, eles deviam se situar perto de quiombos urbanos. Existem ainda documentos que dão conta da prisão de escravos por capoeira em tabernas e casas de angu no Rio de janeiro do início do século XIX, esses locais, além dos quilombos, eram importantes marcos de socialização escrava, fazendo parte da "Cidade Negra", mencionada pelo historiadores.
Lembro-me de colegas estudiosos e ativistas do movimento negro terem me dito que não existem registros de capoeira nos quilombos rurais, nem nos do passado e nem nos do presente.
Assim, capoeira, mato e quilombo não estariam tão separados, mas a associação entre os três é mais sutil do que tenta fazer crer o mito das três raças formadoras da capoeira e da nacionalidade brasileira.
Moreno