quinta-feira, março 24, 2011

Mestre Pombo de Ouro: a capoeira como visão de mundo

Desde que conheci o mestre Pombo de Ouro, venho me fazendo a seguinte pergunta: Como foi que ele desenvolveu uma forma de conceber o mundo que, se deve muito às parábolas e aos treinamentos de prontidão do mestre Bimba, também possui a singularidade de adaptar -- sem fazer concessões -- esses ensinamentos tradicionais ao ambiente da capoeira atual, em que que ela está presente nas escolas, nas academias de ginástica e recebe verbas de projetos sociais? E isso tudo sem ser puro discurso vazio, preparado para ser escrito em documentos para levantar grana ou expandir um determinado grupo. Talvez seja um vício de acadêmico frustrado tentar explicar tudo o que se vê, mas não consigo abandoná-lo. Espero que o mestre encare esse pequeno texto como forma de expor minha admiração.

É muito difícil ignorar o papel da capoeira na vida do mestre, pois pode-se dizer que foi ela que traçou seu destino: forneceu a ele uma forma de defesa contra ataques à sua dignidade, uma fonte de auto-estima e de segurança afetiva. Além disso, a capoeira apresentou-lhe a uma estratégia para conseguir se defender num mundo onde ele está privado tanto de capital cultural e capital econômico, bases que definem a dominação das classes alta e média na sociedade brasileira.

A capoeira lhe forneceu, inclusive, uma família substituta. Depois de ter sido expulso da casa do seu padrinho em Salvador, foi seu camarada Sansão que o acolheu em sua casa e foi Waldemar Santana que o trouxe para Brasília e o ajudou a se inserir no ambiente da capoeira da cidade. Foi esse ambiente que permitiu que o mestre se relacionasse com capoeiristas que provinham das classes alta e média brasilienses -- médicos, arquitetos e estudantes de ensino superior -- em pé de igualdade ou até mesmo a partir de uma posição hierárquica mais alta.

É impossível negar que visão do mundo de mestre Pombo de Ouro está ligada à das classes trabalhadoras brasileiras: "disciplina, autocontrole, pensamento prospectivo" fazem parte dela, como escreve Jessé Souza em seu livro sobre os "batalhadores brasileiros". O que o distingue dos demais membros de sua classe é a capacidade de formalização dessa visão de mundo utilizando o vocabulário e a simbologia da capoeira.

"O grande mestre é o tempo, a grande roda é a vida, e quem não ginga na roda da vida dança." Este é seu principal ditado. E ele abre uma porta para seu pensamento. Enquanto aquele que ginga possui um certo controle da situação em que está envolvido, quem dança é levado por circunstâncias que estão fora do seu controle. Por outro lado, a ginga na roda da vida não tem a ver com a pura liberdade, mas com auto-controle, auto-conhecimento e capacidade de antecipação necessários para saber lidar com as muitas amarras e limitações que fazem parte da realidade das classes populares no Brasil.

Para o "batalhador brasileiro", gingar pode significar procurar ser um trabalhador respeitado por sua competência no emprego de modo a não atrair a antipatia dos superiores, o que proporciona maiores oportunidades de inserção e ascensão social. Ainda assim, a revolta continua fazendo parte do repertório de respostas do capoerista em caso de um ataque frontal à sua dignidade, mas deve ser feita de forma muito bem pensada, já que seria feita num contexto desfavorável.

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Mas o que isso tem a ver com capoeira? Já explico. É que tanto mestre Bimba quanto mestre Pastinha fizeram parte de uma geração de membros das classes populares -- em grande parte afro-descendentes -- que, premidos pelo contexto da modernização do país no começo do século XX, recriaram a forma de ver o mundo de sua classe social. Se, de alguma maneira, acabaram aderindo a novos dispositivos disciplinares que iam no sentido do aumento da docilidade do trabalhador brasileiro, adaptando-o a uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo no país, por outro lado, garantiram a renovação de grande parte de suas tradições, a partir das quais poderiam construir novas formas de resistência.

Entre os principais feitos dessa geração está a recriação de uma noção tão importante para a capoeira como a de malandragem: segundo a nova estratégia das classes populares, o malandro não deveria mais chamar atenção sobre si e seus atos e nem atacar diretamente a ordem estabelecida: "o verdadeiro malandro não diz que é". Foi nessa época que a malandragem e a capoeira puderam ser erigidas em filosofias de vida e concebidas como portadoras de uma visão de mundo: a malandragem torna-se algo pessoal e interior, entranhado na própria personalidade do indivíduo e passível de ser utilizada em qualquer contexto de sua existência.

As artes marciais orientais passaram por uma transformação semelhante mais de trezentos anos antes da capoeira, no contexto da unificação política e da pacificação interna do Japão. A partir de 1603, proibidos pelo xogum de utilizarem suas armas e técnicas de combate, os samurais passaram a associar o treino e o aprendizado de suas técnicas a uma forma de autoconhecimento e autocontrole que deveria levar ao aperfeiçoamento pessoal e espiritual do praticante.

O objetivo das artes marciais deixaria de ser matar o combatente adversário na guerra e passaria a ser vencer a si mesmo, lutando contra as próprias imperfeições a cada treino, a cada golpe praticado. Num combate, os movimentos dos lutadores estariam obedecendo aos movimentos das forças vitais que regem o mundo e os princípios fundamentais que animam a natureza estariam se manifestando nos movimentos e técnicas utilizados pelos lutadores.

É nesse sentido que se pode dizer que a capoeira se "orientalizou" com Bimba e Pastinha. Não é à toa que as "parábolas" de mestre Bimba são comparadas por Dr. Decânio a ensinamentos zen -- "árvore grande pode ter macaco nus gaiu"; "num sentá de costa pra rua"; "queinh dromi in casa di ôtru homi num fêxa us óiu, conta as têia". Dr. Decânio tem a percepção de que os conselhos presentes em cada uma dessas histórias podem ser extrapolados para vários contextos da vida de uma pessoa. E mais, os treinamentos de prontidão da academia de mestre Bimba complementavam as suas parábolas: serviam para que o discípulo internalizasse a capacidade de antecipação de qualquer tipo de ameaça dentro ou fora da roda de capoeira. Uma vez adquirida, essa capacidade tornava-se parte da forma de o discípulo se relacionar com o mundo.

É por isso que mestre Pombo pode ser considerado herdeiro direto de mestre Bimba. Graças ao treinamento da capoeira regional, ele percebe as interações que existem dentro da roda de capoeira como uma miniatura daquelas que ocorrem na vida. Foi também graças à regional que o mestre internalizou faculdades como a prontidão, que podem ser utilizadas tanto na roda quanto fora dela.

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Interessante é que os ensinamentos de mestre Bimba sofreram um redirecionamento na interpretação que deles fez mestre Pombo. Sou sempre tentado a explicar esse redirecionamento pelo choque que ele sofreu com a expulsão de casa pelo padrinho que o criava quando era um adolescente em Salvador. Talvez tenha sido esse acontecimento o detonador da transformação do mestre, se é que as coisas que têm a ver com a alma humana possuem apenas uma explicação. O trauma sofrido na sua dignidade e os ensinamentos das parábolas de mestre Bimba tê-lo-íam levado a elaborar uma visão de mundo que tem a capoeira como matriz e que tem como princípio básico a preservação da própria dignidade.

Assim, se para mestre Bimba a capoeira tinha que ver com a preservação da vida do capoeirista frente a inimigos que atacavam de surpresa, para seu discípulo o que deveria ser salvo pela capoeira não era apenas a integridade física do indivíduo, mas também a possibilidade de ele ser respeitado e de se inserir socialmente mantendo a sua dignidade. A capacidade de antecipação para mestre Pombo também não diz respeito apenas à proteção de seu corpo contra a agressões físicas, mas também à defesa contra o perigo de ser colocado em uma posição desfavorável em qualquer contexto de sua vida. Já a capacidade de auto-observação diz respeito a evitar perder o controle sobre os próprios atos, algo muito prejudicial para um membro das classes populares que dispõe de poucos recursos para se impor frente a seus superiores. Para mestre Pombo, fora da roda, o capoeirista luta pela preservação de sua dignidade num mundo hostil. É nessa defesa radical da própria dignidade que está o potencial revolucionário da visão de mundo de mestre Pombo de Ouro.


Foi também a capoeira que ajudou mestre Pombo a desenvolver uma sensibilidade muito aguçada para as demarcações cotidianas de superioridade e inferioridade que se estabelecem nas relações humanas. É por isso que alguns o chamam de "paranóico". Essa "paranóia" é, simplesmente, um componente fundamental do que o capoeirista chama de mandinga ou malícia: a capacidade de intuir e antecipar os movimentos do adversário, e que precede a sua vitória. Ela também é essencial para a vida fora da roda: utilizando sua malícia, o batalhador pode analisar o contexto no qual toma suas decisões.

A preocupação com a preservação da dignidade e com o aperfeiçoamento pessoal também foi estendida ao outro e ao aprendiz de capoeira. É aí que esta a originalidade do mestre Pombo como professor: ele constrói em suas aulas um espaço que tem como princípio o respeito entre mestre-aluno e aluno-aluno. É isso o que explica sua desconfiança quanto ao uso da corda na capoeira (ele mesmo não põe sua corda de mestre na cintura), pois a graduação superior pode servir de pretexto para atos de humilhação, menosprezo ou autoritarismo perpetrados contra outro capoeirista de graduação inferior. A excessiva importância dada à graduação é ela mesma um sintoma de imaturidade do capoeirista, pois significa tomar um aspecto exterior por outro, interior e essencial do indivíduo.

A ética do "capoeirista cidadão" também aparece em suas aulas durante a conversa que realiza com seus alunos no final das mesmas, o "papoeira". Se o verdadeiro malandro não espalha, seu camarada, o verdadeiro capoeirista, é um bom trabalhador e um bom cidadão -- respeitado por todos mas capaz de se revoltar caso sua dignidade seja ameaçada. Se a roda de capoeira é uma miniatura da roda da vida, o objetivo dos treinos não é apenas o aprendizado e o aperfeiçoamento dos movimentos da capoeira, mas também um aprendizado pessoal de amadurecimento, auto-conhecimento e malícia com o objetivo de conseguir uma inserção social digna que esteja ao alcance dos batalhadores brasileiros.

Foi por isso que, no período que talvez possa ser reconhecido como o ponto máximo de sua carreira até hoje, essa visão de mundo -- desenvolvida a partir de uma interpretação muito particular dos ensinamentos de mestre Bimba -- mostrou ser adaptável também à visão do esporte educacional tal como foi concebida por figuras como César Barbieri e colocada em prática em vários projetos, entre eles os JEB's de meados dos anos 80/começo dos anos 90 e o Capoeira Arte e Ofício, da 2ª metade dos anos 90.

Isso porque mestre Pombo fornecia algo que era muito valorizado pelos idealizadores de tais projetos: uma concepção de capoeira que ia numa direção oposta à associada ao modelo do esporte de alto rendimento, que ainda contava com alguma força institucional no período imediatamente posterior à ditadura militar. A capoeira de mestre Pombo respeitava a autonomia, a dignidade e a capacidade de convivência harmônica do aluno com seus pares, promovia o autoconhecimento e era informada por uma visão de mundo ligada ao corpo e identificada com um "jeito brasileiro de aprender a ser", uma visão de mundo construída a partir da cultura e da experiência negra e popular no Brasil.

FIM

quinta-feira, março 17, 2011

A "orientalização" da capoeira

Como frisaram Vieira e Assunção, codificar uma visão de mundo própria da capoeira -- uma filosofia de vida baseada na vadiação -- não deixa de aproximar a capoeira das artes marciais orientais. Tais autores se referem às várias frases proferidas por mestre Pastinha sobre a capoeira, tais como: "Capoeira é tudo o que a boca come"; "capoeira é mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista."

Essa "orientalização" da capoeira -- que talvez tenha começado com mestre Pastinha -- é um fenômeno muito complexo que parece corresponder a um desenvolvimento interno à capoeira e à própria cultura afro-brasileira. Isso porque, se mestre Pastinha frisa os opostos que convivem na roda de capoeria -- a capoeira negativa, defensiva, que guarda em si a surpresa da capoeira positiva -- à maneira do Yin e do Yang chinês; por outro lado, quem come tudo o que a boca come é Exu, o orixá mensageiro, traiçoeiro e enganador que recebe as primeiras oferendas logo no início da cerimônia do candomblé.

Fiz essa digressão em torno de mestre Pastinha porque também no mestre Pombo percebo essa tendência para a "orientalização", claramente inspirada em mestres como Bimba e Pastinha, mas também em sua experiência de vida ligada àquela das classes populares brasileiras, bem como n o seu acesso à cultura pop internacional. Essa tendência à orientalização é perceptível na frase mais pronunciada pelo mestre Pombo: "O grande mestre é o tempo, a grande roda é a vida e quem não ginga na roda da vida dança." Porém, outro de seus ensinamentos, "o capoeirista deve ser como a água, adaptar-se a todas as situações", é claramente inspirado na frase de Bruce Lee sobre o praticante de kung fu.

A aura de misticismo desenvolvida por mestre Pombo combinou muito bem com o projeto do esporte educacional que César Barbieri e outros estavam tentando institucionalizar na Secretaria do Esporte nos anos pós-ditadura militar no quadro dos Jogos Escolares Brasileiros: o de uma capoeira mais reflexiva e expressiva na qual o aluno podia aprender na roda e nos treinos algo sobre a vida, expressar sentimentos relativos ao processo de ensino-aprendizagem e à sua própria existência e interagir com outros praticantes de capoeira para além da pura e simples competição.

A emergência desse projeto tinha muito que ver com a perda de poder do aparato militar nas instituições que regiam o país como um todo a partir de 1985. Era um momento no qual não só as idéias libertárias referentes ao esporte, mas também à sociedade brasileira em seu conjunto podiam ser formuladas e chegar a obter espaço no estado recém-democratizado.

Foi nesse contexto que um praticante da arte como Nestor Capoeira escreveu o seu "Galo já cantou", também um projeto que enxergava a capoeira como filosofia de vida ao lado da Psicanálise européia e do Zen asiático. Outros escreveram que o corpo do capoeirista guardava em si a memória da liberdade, sendo uma arma contra a ditadura e que ensinar capoeira era, naturalmente, ensinar democracia e criar cidadão livres e críticos a qualquer forma de autoritarismo.

Hoje em dia, o contexto é um pouco diferente. A contracultura foi cooptada e tornou-se modismo. As formas de gestão criadas pelas empresas japonesas já demonstraram que a reflexão do trabalhador sobre seu próprio trabalho, a expressão das próprias opiniões e a interação com os colegas para além da simples competição também podem se transformar em forma de controle da mão-de-obra, espalhando-se por qualquer ambiente de trabalho, inclusive no setor público.

Algo parecido se dá no campo da capoeira. Já li trabalhos de capoeiristas formados em psicologia que comparavam as etapas de graduação de seu grupo com as etapas do desenvolvimento psicológico humano. Eles chegam ao absurdo de defender que quanto mais avançada a graduação, mais madura e desenvolvida seria a personalidade do capoeirista. Ora, como o mestre possui a maior graduação dentro do grupo, ele é o ser humano mais maduro e desenvolvido que seus alunos conhecem! É isso que defendem esses pseudo-psicólogos em seus trabalhos de puro proselitismo, legitimando a autoridade dos mestres dentro de seus grupos a serviço de uma nova forma de organização dos mesmos em franquias multinacionais.

Esse é um exemplo de como um discurso "místico" e "libertador" pode servir a propósitos outros que eles não expressam de forma evidente.

Um abraço e até a próxima camaradas,