quinta-feira, janeiro 25, 2007

Pastinha, Gilberto e Hendrix

Amigos e amigas, nos anos 90 uma rádio daqui de Brasília tinha um programa dominical de entrevistas com músicos importantes que vinham se apresentar nos palcos da cidade. O programa funcionava da seguinte maneira: o apresentador pedia para o artista listar 1o gravações que tinham influenciado sua carreira; as músicas eram executadas em grupos de 3 ou 4 por bloco, com o artista explicando o motivo de cada escolha e chamando atenção para alguns aspectos musicais que ele achava importantes.
Lembro do dia em que o convidado foi o filho do Tom Jobim, de cujo nome não me lembro. Sendo um músico relativamente jovem, uma das gravações que ele listou foi "Purple Haze" do Jimi Hendrix. Chamando atenção para um descompasso aparente que havia entre a bateria, de um lado, e o baixo e a guitarra de outro, ele disse que esse mesmo recurso aparecia na voz e no violão de João Gilberto. Achei interessantíssimo aquilo: dois músicos de estilos diferentes e que viviam em mundo paralelos utilizando uma técnica parecida, um na MPB e o outro no rock 'n' roll, um com seu banquinho e violão e o outro com sua guitarra endemoninhada.
Guardei essa admiração pela convergência entre os dois músicos por muito tempo até que, há alguns anos, escutei mestre João Grande cantar: " Janaína, rainha sereia do mar/não deixa meu barco virar" e "Iê, maior é Deus/ maior é Deus /Pequeno sou eu / o que eu tenho/ foi Deus que me deu..." além de outras cantigas. Nelas, berimbau e voz parecem não ter nada a ver um com o outro numa mandinga sonora que desconcerta o ouvido de qualquer um que escuta. Inclusive, tenho um camarada que disse, ao ouvir as gravações: "esse cara precisa aprender a cantar".
E o interessante é que não é só mestre João Grande que canta assim: depois percebi que mestre João Pequeno e que o próprio mestre Pastinha também o faziam, o que dá uma pista de que tal "descompasso" pode estar ligado não só a uma escola de vadiação mas até mesmo a uma característica musical afro que aparece e se atualiza na capoeira do mestre Pastinha, na bossa nova de João Gilberto e no rock'n'roll de Jimi Hendrix.
É claro que sempre existe a hipótese de o baiano João Gilberto, de alguma forma, ter aproveitado os sons da capoeira de mestre Pastinha na criação de seu estilo; não seria a primeira vez que música popular e jazz se encontrariam. E também pode ser que Hendrix, tendo profundo contato com a música negra americana, tenha aproveitado aquela característica em sua música. Mesmo que tenha acontecido isso, essa reelaboração não anula a hipótese da existência de um "descompasso afro-americano" na música desses caras.
Por outro lado, Vicente Pastinha, João Gilberto e Jimi Hendrix podem ter tirado isso de suas cartolas, gênios criativos que eram. E aí eles não teriam nada em comum entre si.
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Explicar coisas desse tipo é complicado... Entramos no meio nebuloso de como o indivíduo trabalha as heranças culturais conscientes e inconscientes na criação artística. Sobre esse campo misterioso eu nem me atrevo a opinar.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

"Esquenta-banha"



Camaradas, creio que hoje em dia a maioria das cidades brasileiras possui aquelas lanchonetes montadas dentro de trâileres. Aqui pelo Goiás e Tocantins elas são chamadas de “pit dogs”. Lembro que surgiram no começo dos anos 80, possuindo como caracteristica principal um cardápio formado por sanduíches cujos nomes sempre começam com a letra “X” e íam desde o X-bacon, o X-frango, o X-salada até o animalesco X- tudo. De lá para cá, elas fizeram muito sucesso e se espalharam pelo país.
É claro que o “X” é uma referência ao cheese que aparece nos nomes dos sanduíches das franquias americanas ou das lanchonetes brasileiras top de linha, mas não tem nenhum significado literal: o X- milho pode não conter queijo, por exemplo. Tenho amigos que dizem que isso é um reflexo da ignorância dos proprietários de pit dogs, que, vindos de classes mais baixas, não puderam estudar inglês.
Porém, "o buraco é mais embaixo", os novos nomes dos sanduíches podem também ser encarados como uma interpretação brasileira e popular dos nomes estrangeiros e bacanas que constam nos cardápios das redes de fast food. Nesse sentido, são uma inovação no campo dos menus de lanchonetes.
Algo parecido ocorre na capoeira. Já ouvi em determinadas rodas o mestre dizer: “agora é a hora do 'esquenta banha'!”, e acelerava o toque de São Bento Grande da Regional. O jogo correspondente a tal momento da roda é rápido e, geralmente, mais alto, permitindo algum contato um pouco mais violento, tanto que ao anunciar a subida do toque alguns mestres falam, num tom de desafio bem humorado: “Agora entra quem quer e sai quem pode.”
Ora, o mestre Bimba nunca poderia prever no que se transformaria o seu “esquenta banho”! Segundo relatos de seus alunos, depois de a última dupla jogar iúna o mestre encerrava a roda, pendurava seu berimbau na parede e sentava num banquinho na porta de sua academia . Os alunos, ainda com sangue quente e empolgados pela aula, começavam a se enfrentar sem berimbau, música ou roda numa espécie de vale-tudo. Tal momento foi chamado de esquenta banho porque no banheiro da academia havia apenas um cano de onde saía somente água fria.
Não deixava de ser um recurso pedagógico interessante, já que a regional se legitimava frente à angola pelo seu caráter de luta e que aquele era um momento no qual os alunos exercitavam a criatividade de seus golpes numa disputa sem muita interferência do mestre, que podia ser inibidora. Era, inclusive, a hora de os discípulos desenvolverem a malícia, testarem a efetividade dos golpes da regional contra os recursos de outras artes marciais conhecidas por eles e treinarem a capoeira como defesa pessoal. Segundo os relatos, a coisa acontecia no clima de camaradagem que imperava nas aulas, mas o “bicho pegava” mesmo.
Hoje em dia, muitos grupos interpretam o “esquenta banho” como “esquenta banha”, criando um novo momento na roda, caracterizado por um jogo alto, rápido e um pouco intempestivo que acontece no final da vadiação. Próximo a essa acepção, outros grupos criaram, com um espírito menos violento, uma forma de jogo chamada “alto-ligeiro”, nomeada dessa maneira possivelmente para não permitir a sua associação com a marcialidade evocada pelo nome de origem.
Ambos são interpretações do modelo da Capoeira Regional e que diferem, frente àquele e entre si, por corresponderem a concepções diferentes do jogo e do seu ensino. Se por um lado são o resultado de uma leitura menos competitiva e mais cooperativa da capoeira -- principalmente o alto-ligeiro -- por outro distanciam-se da visão tradicional de mestre Bimba, que utilizava o esquenta banho como uma forma de desenvolver a malícia e o aspecto de defesa pessoal da vadiação.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Capoeira Benguela

Camaradas, no ano passado assiti a uma palestra sobre capoeira angola promovida por um jovem mestre dissidente de uma grande entidade e, segundo suas palavras, representante de uma linhagem particular do brinquedo de angola. A intenção desse encontro era criar laços entre angoleiros-- ou simpatizantes-- brasilienses e o grupo que ele estava criando.
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Parênteses: isso chama atenção também para um aspecto do nosso meio que às vezes é visto de forma muito ingênua por nós mesmos: a formação de novos grupos ou estilos. Na verdade, eles surgem de conflitos "humanos, demasiado humanos" que envolvem prestígio, desavenças pessoais entre mestres e até disputa por verbas públicas para o financiamento de projetos.
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Voltando à palestra, lembro que cada um dos ouvintes foi instado a dizer qual estilo de capoeira praticava. "Angola", disse a maioria. "Regional", outros responderam; houve até quem dissesse "Contemporânea" -- ainda que com algum receio de ser ridicularizado. Mas a resposta que surpreendeu a todos foi: "Benguela".
O rapaz que respondeu assim era um jovem professor que dá aulas para crianças aqui no entorno do Distrito Federal e parecia ser muito envolvido no que fazia, tendo inclusive mostrado boas idéias quando pedia a palavra para falar.
Quando saí da palestra fiquei pensando no que deve ter levado aquele professor a "fundar" um novo estilo na vadiação. A coisa deve ter acontecido assim: aborrecido e decepcionado com a violência de certos grupos associados aos estilos chamados Regional ou Contemporâneo, ele teve vontade de se transformar em angoleiro. Não sendo aceito no meio da capoeira angola, o professor optou por uma solução interessante.
Sabemos que a estilização do toque de benguela da capoeira regional e de um tipo de jogo hipoteticamente associado a ele vêm sendo promovidos por um grande grupo já há alguns anos. Isso acabou correspondendo a anseios do "mercado capoeirístico": uma maior ludicidade dentro do campo da "regional-contemporânea" e uma resposta ao fechamento de muitos grupos de angola. Então aquele professor escolheu esse toque-estilo de jogo que combinavam com a sua postura dentro da roda para designar o estilo da capoeira que ele ensina.
Vejam como é que as coisas funcionam: se ele tivesse obtido o reconhecimento de um grupo de angola, ele hoje se diria angoleiro. Se tivesse feito contato com grupos de regional ou contemporânea que prezassem mais a ludicidade do jogo, hoje seria a um desses "estilos" que ele estaria filiado.
A escolha desse professor não deixa de mostrar a criatividade existente dentro do nosso meio e também o modo como a disputa por prestígio influencia o desenvolvimento da brincadeira. Se ele tivesse um maior reconhecimento dentro do meio e estivesse mais bem relacionado, provavelmente surgiria um novo estilo na vadiação.
Moreno

sexta-feira, janeiro 12, 2007

A entronização do Gigante Negro

A postagem da semana passada me lembrou muito aquela cantiga bem conhecida no meio da capoeira:" Riachão tava cantando, na cidade do Açu/quando apareceu um negro da espécie do urubu...". Isso porque, afinal de contas, o senhor que apareceu na roda à qual me referi naquela crônica era -- como diz a ladainha -- "um negro desconhecido", ninguém sabia de onde ele veio e nem para onde ia. Aliás, ele nunca mais apareceu por aqui.

O interessante é que ladainhas como essa falando mal do negro não são raras na capoeira. Lembro-me de outra que começa assim:"O anum é um passu preto do bico todo rombudo...". A música inteira fala mal prá caramba da cor negra mas acaba assim: "mas já vi muita mulher branca, com filho negro no colo" . E aí entra a chula: " iê viva meu Deus...".

Aí é que está a graça da brincadeira: nas suas dubiedades. Como é que pode uma manifestação cultural de origem afro-brasileira falar mal daqueles que a inventaram? Essa confusão fica mais aparente quando a gente está numa roda e percebe que, quando uma pessoa negra compra o jogo, o “clima”, a “energia” ou o “axé” da roda parecem aumentar de intensidade.

Escrevo isso baseado na observação de uma roda aqui da cidade que tem como principal atração um negão enorme: turistas brasileiros e estrangeiros, bem como capoeiristas visitantes, pedem para tirar fotos com ele no final da vadiação e os jogos do mestre com o cidadão são como um número fixo do espetáculo dominical.

Inclusive um dos momentos de maior tensão é justamente quando ele sai do pé do berimbau dando dois macacos seguidos e emenda num salto mortal. Como o homem é grande e precisa de muito espaço e impulso para fazer tais movimentos, os graduados organizadores da roda, pressentindo o perigo, pedem para a assistência se afastar e os pais evitarem deixar as crianças na beira da roda, pois se o cara cair em cima de alguém...

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Parênteses: a figura do gigante é recorrente nas manifestações da cultura popular. O que é interessante nesse caso é que essa valorização do gigante, de que se tem notícia desde a Antigüidade, seja atualizada na forma de um capoeirista negro supervitaminado.
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Penso que é nesse ponto que existe a valorização do negro, e aqui vai a minha teoria: assim como o berimbau toca Dim (o arame preso, ataque, capoeira positiva) e Dom (arame solto, esquiva, capoeira negativa) -- ataque e defesa formando as duas faces da mesma moeda -- também as referidas ladainhas funcionam dessa maneira, os insultos ao negro sendo a face negativa da moeda, pressupondo a existência da face positiva.

Essa face positiva é representada não só pelo Gigante Negro mas também por vários outros capoeiristas afro-brasileiros cuja simples figura contribui para aumentar a intensidade do envolvimento dos capoeiristas e da platéia com a roda. É esse envolvimento, essa alegria de estar "junto e misturado" (como estão cantando os rappers brasileiros) dissolvendo sua individualidade na roda que o Dr. Decânio chama de transe capoeirano.

Como a face positiva da negritude na roda é inegavelmente dominante e avassaladora, a minha percepção é a de que essa positividade é tão flagrante que pode, e até deve, ser ironizada; visto que autoridade absoluta e cultura popular não se relacionam muito bem. Porém, ao ironizar a presença negra, as “cantigas de insulto” estão chamando atenção para ela e sublinhando sua importância.

No final das contas, as cantigas de insulto servem para elogiar, por vias tortuosas, o negro na roda de capoeira. O insulto sendo simplesmente a face negativa do elogio. Elas acabam enfatizando a importância da presença do Gigante Negro na roda, entronizando-o como uma espécie de “príncipe” ao lado do mestre.

Essa dubiedade do "elogio insultoso" e do "insulto elogioso" também é característica importante das manifestações da cultura popular, servindo para inverter a ordem estabelecida, subvertendo simbolicamente o estado de coisas vigente na sociedade, celebrando a presença negra, modificando temporariamente as relações raciais no Brasil. A capoeira não deixa de ter esse papel de inversão nos dias de hoje.

Esse processo é igual ao que acontecia nos desfiles de escolas de samba antes de sua transformação em show. Mestre-sala e porta-bandeira, em geral um homem e uma mulher negra fantasiados de rei e rainha, eram as figuras de maior importância de uma agremiação.

A conclusão é que nem sempre devemos levar ao pé da letra aquilo que escutamos numa roda. A cantiga pode estar relacionada aos subterfúgios de resistência da cultura popular, a um contexto específico na roda e a uma disputa cultural dentro da sociedade envolvente.

Por hoje é só, pessoal Até a próxima semana.

Moreno

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Um momento irrepetível (versão do blog)



Camaradas, um dia desses um amigo me confessou: “não gosto de assistir a vídeos de roda de capoeira, pois perde-se todo o clima da vadiação, a empolgação da música, do coro e das palmas, o sentimento de se estar fazendo parte de uma coisa única e que não vai se repetir”.
No geral, concordo com ele. Porém, sei que nos dias de hoje, já começamos a assistir a vídeos para aprender movimentos e que há muitos DVDs de aulões de capoeira nas bancas que podem ser utilizados até mesmo para a atualização dos professores.
Mas não era bem disso que eu queira falar. Aquele parágrafo inicial era para abordar o caráter irrepetível de toda a boa roda. Escrevo sobre isso citando um jogo que presenciei aqui em Brasília.
Tocava-se uma Benguela bem lenta quando uma pessoa da assistência abre caminho na roda e se ajoelha ao pé do berimbau. Era um senhor negro, que aparentava ter uns 50 e poucos e que vinha com uma bolsa de couro pendurada a tiracolo. Já possuía alguns cabelos brancos e uma certa barriga num físico normal para um coroa da sua idade. O problema é que, além de nunca ter sido visto no ambiente, ele havia passado na frente de uma galera na fila e nem pediu permissão para o mestre – um cara que costuma responder a tais impertinências com chutes bem colocados.
Não existe aquele ditado -- “cachorro que engole osso, nalguma coisa se fia...”? Pois bem, pensei comigo: o que vai sair dali? Ele corria o risco de ser exposto ao ridículo ou mesmo de ganhar alguns hematomas. O senhor tinha de mostrar alguma qualidade para reverter a percepção geral que ele tinha causado na roda.
Acontece que o tal senhor comprou o jogo e saiu num aú-cabeça de quem já entendia das coisas. Rabo-de-arraia para lá e para cá colocando um jovem professor em situações delicadas. O clima da roda ainda era meio contrário a ele, pois seu jeito de jogar – aprendido em qual vadiação? – era meio que uma afronta àquele que todos naquela roda viemos aprendendo em academias. E parece que sentir raiva do diferente, mesmo admirando- o, faz parte das contradições do ser humano.
Mas a habilidade do cidadão já estava reconhecida e o mestre da roda – sensível para essas situações -- cantava, advertindo o capoeirista mais jovem que jogava com o senhor: “Toma cuidado, moleque atrevido/ calça de homem não dá em menino”; ou “Fulaninho, cuidado/ com esse jogo mandingado”. Em determinado momento, o cidadão pára e faz uma chamada. Uma contra-mestra já fica meio indignada: “Ei, isso é Benguela, não tem chamada!” O cidadão faz um muxoxo, um gesto de desprezo e continua a chamada. “Quem era aquela menina para lhe ensinar capoeira?” -- pensei. Algum tempo depois, seu jogo acaba e, percebendo que não foi muito bem recebido por nós, pega sua capanga de couro e vai embora.
São coisas como essas que eu observo numa roda de capoeira, seus momentos de tensão; a impertinência do velho capoeirista, os sentimentos dúbios que sua entrada na roda despertou em nós: raiva e admiração pelo seu estilo, pela sua idade e pela sua autoridade. Alem disso, diferentes momentos da esportivização da capoeira se apresentaram para nós naquela roda e uma maneira meio mesquinha de se lidar com o que é diferente também. E só quem esteve presente viu e sentiu na pele.


Moreno