A entronização do Gigante Negro
A postagem da semana passada me lembrou muito aquela cantiga bem conhecida no meio da capoeira:" Riachão tava cantando, na cidade do Açu/quando apareceu um negro da espécie do urubu...". Isso porque, afinal de contas, o senhor que apareceu na roda à qual me referi naquela crônica era -- como diz a ladainha -- "um negro desconhecido", ninguém sabia de onde ele veio e nem para onde ia. Aliás, ele nunca mais apareceu por aqui.
O interessante é que ladainhas como essa falando mal do negro não são raras na capoeira. Lembro-me de outra que começa assim:"O anum é um passu preto do bico todo rombudo...". A música inteira fala mal prá caramba da cor negra mas acaba assim: "mas já vi muita mulher branca, com filho negro no colo" . E aí entra a chula: " iê viva meu Deus...".
Aí é que está a graça da brincadeira: nas suas dubiedades. Como é que pode uma manifestação cultural de origem afro-brasileira falar mal daqueles que a inventaram? Essa confusão fica mais aparente quando a gente está numa roda e percebe que, quando uma pessoa negra compra o jogo, o “clima”, a “energia” ou o “axé” da roda parecem aumentar de intensidade.
Escrevo isso baseado na observação de uma roda aqui da cidade que tem como principal atração um negão enorme: turistas brasileiros e estrangeiros, bem como capoeiristas visitantes, pedem para tirar fotos com ele no final da vadiação e os jogos do mestre com o cidadão são como um número fixo do espetáculo dominical.
Inclusive um dos momentos de maior tensão é justamente quando ele sai do pé do berimbau dando dois macacos seguidos e emenda num salto mortal. Como o homem é grande e precisa de muito espaço e impulso para fazer tais movimentos, os graduados organizadores da roda, pressentindo o perigo, pedem para a assistência se afastar e os pais evitarem deixar as crianças na beira da roda, pois se o cara cair em cima de alguém...
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Parênteses: a figura do gigante é recorrente nas manifestações da cultura popular. O que é interessante nesse caso é que essa valorização do gigante, de que se tem notícia desde a Antigüidade, seja atualizada na forma de um capoeirista negro supervitaminado.
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Penso que é nesse ponto que existe a valorização do negro, e aqui vai a minha teoria: assim como o berimbau toca Dim (o arame preso, ataque, capoeira positiva) e Dom (arame solto, esquiva, capoeira negativa) -- ataque e defesa formando as duas faces da mesma moeda -- também as referidas ladainhas funcionam dessa maneira, os insultos ao negro sendo a face negativa da moeda, pressupondo a existência da face positiva.
Essa face positiva é representada não só pelo Gigante Negro mas também por vários outros capoeiristas afro-brasileiros cuja simples figura contribui para aumentar a intensidade do envolvimento dos capoeiristas e da platéia com a roda. É esse envolvimento, essa alegria de estar "junto e misturado" (como estão cantando os rappers brasileiros) dissolvendo sua individualidade na roda que o Dr. Decânio chama de transe capoeirano.
Como a face positiva da negritude na roda é inegavelmente dominante e avassaladora, a minha percepção é a de que essa positividade é tão flagrante que pode, e até deve, ser ironizada; visto que autoridade absoluta e cultura popular não se relacionam muito bem. Porém, ao ironizar a presença negra, as “cantigas de insulto” estão chamando atenção para ela e sublinhando sua importância.
No final das contas, as cantigas de insulto servem para elogiar, por vias tortuosas, o negro na roda de capoeira. O insulto sendo simplesmente a face negativa do elogio. Elas acabam enfatizando a importância da presença do Gigante Negro na roda, entronizando-o como uma espécie de “príncipe” ao lado do mestre.
Essa dubiedade do "elogio insultoso" e do "insulto elogioso" também é característica importante das manifestações da cultura popular, servindo para inverter a ordem estabelecida, subvertendo simbolicamente o estado de coisas vigente na sociedade, celebrando a presença negra, modificando temporariamente as relações raciais no Brasil. A capoeira não deixa de ter esse papel de inversão nos dias de hoje.
Esse processo é igual ao que acontecia nos desfiles de escolas de samba antes de sua transformação em show. Mestre-sala e porta-bandeira, em geral um homem e uma mulher negra fantasiados de rei e rainha, eram as figuras de maior importância de uma agremiação.
A conclusão é que nem sempre devemos levar ao pé da letra aquilo que escutamos numa roda. A cantiga pode estar relacionada aos subterfúgios de resistência da cultura popular, a um contexto específico na roda e a uma disputa cultural dentro da sociedade envolvente.
Por hoje é só, pessoal Até a próxima semana.
Moreno
2 Comments:
Sabe que a primeira vez que prestei atenção nessa música (Peleja de Riachão), achei muito estranho e tive um pensamento diferente do seu.
Acho que embora hj faz-se uma leitura da capoeira como resistência dos negros contra escravidão. Embora a capoeira fora usada por muitos escravos em contenda com policiais, isso não implica que a capoeira fora repassada entre as pessoas com este intuito.
Daí que seria natural que os capoeiristas na época da introdução do berimbau e das cantigas, não se preocupassem com conteúdo das canções, cantavam apenas as coisas populares que tinham conhecimento.
O caso da "Peleja de Riachão" em específico, tive a oportunidade de ver em uma feira de livros, em uma banquinha de literatura de cordel, um livrinho com o mesmo nome. Comprei na hora.
Encontrei lá parte de tal ladainha, ou seja, ela foi escrita fora da capoeira (talvez nem mesmo por um negro), mas foi trazida pra capoeira, provavelmente, como algo popular na época. Aliás, no finalzinho do cordel ainda pude encontrar uma famosa quadra de Bimba "Ao pé de mim tem um vizinho, que enricou sem trabalhar, etc...". É claro que também existe a hipótese do escritor ter aproveitado os versos do conhecimento popular.
Se analisarmos as canções mais recentes, mesmo que quase todos grupos lançam CDs hj, acho que não será fácil encontrar cantigas com tal teor. Pois hj em dia, na cabeça do capoeira, a capoeira está claramente associada a um movimento de resistência negra.
[]'s, Valdinei
Caro Valdinei, muito interessantes suas obeservações. No geral concordo com elas. Mas é que eu estava escrevendo especificamente sobre uma situação que se repete somente numa determinada roda e numa determinada situação dentro dela (a entrada daquele capoeirista negro). Na mesma roda quando o cara não está presente,a tal música nem é cantada.
Sabemos também que tal cantiga mostra a ambigüidade da representação da visão do negro na cultura popular brasileira: repulsa e atração pelas sua características físicas e atribuição de características sexuais extraordinárias são alguns deles.Daí eu ter frisado que a ladainha, naquela situação, é um elogio feito pr vias tortuosas.
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