A “resistência surda” dos capoeiristas
Camaradas, um dos melhores livros que já li sobre nosso brinquedo foi o Capoeira - os fundamentos da malícia, de Nestor Capoeira. Recomendo para qualquer um que esteja querendo conhecer alguma coisa sobre a história da brincadeira e ter alguma noção da visão de mundo que está por trás dela. É dele a frase: "na Ásia, existe o zen; a Europa criou a psicanálise; no Brasil, temos o jogo da capoeira."
Essa frase mostra que Nestor vê a capoeira como uma criação cultural que responde a necessidades humanas fundamentais, tais como a necessidade de extravasar os instintos de violência existentes em todos nós, a necessidade de ritualização da existência; a busca, no contexto fragmentado da vida moderna, por uma âncora estabilizadora, pelo conhecimento de si e dos outros e por uma visão unificada do mundo.
Daí que, diferente de muitos autores, Nestor Capoeira não concorda com uma alardeada decadência da capoeira no mundo de hoje, fruto da "perda das tradições". Pelo contrário, ele defende que a "era de ouro" do nosso brinquedo não está num passado distante, mas no presente.
Apesar dessa visão otimista, Nestor Capoeira faz algumas críticas a determinadas visões do nosso jogo. Tendo participado dos primórdios do grupo Senzala, Nestor faz algumas reservas ao método de ensino criado por tal grupo nos anos 60. Baseadas na repetição, enfatizando o condicionamento físico e praticando uma forma meio autoritária de ensino, as aulas do grupo teriam deixado de lado a malícia e a criatividade da vadiação como ensinada e praticada pelos velhos mestres baianos.
Isso não impede o autor de reconhecer o marco que foi esse grupo para a história do brinquedo. Hoje em dia, quase todos os grupos de capoeira, incluindo os de angola, utilizam algumas de suas contribuições, e essa convergência foi que levou alguns estudiosos, nos anos 80, a escreverem que a vadiação estava conhecendo uma unificação em torno de uma "capoeira contemporânea" que juntaria angola e regional e teria métodos semelhantes de treinamento.
O Senzala da década de 60 fez com a capoeira algo parecido com o que mestre Bimba fez com a vadiação nos anos 30: criou uma nova metodologia de ensino, com uma estética mais esportiva do jogo (golpes esticados e maior velocidade) e apresentou a capoeira para estratos sociais distanciados da vadiação. Afinal, o fato de o grupo ser formado por garotões brancos da Zona Sul do Rio de Janeiro, vitoriosos em vários campeonatos nacionais, colaborou para a disseminação tanto de seu método de ensino quanto de sua estética de jogo.
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Esse assunto de metodologia de ensino é muito interessante. Eu tendo a perguntar até que ponto um sistema pedagógico pode moldar um capoeirista. Tudo bem, sabemos que dois capoeiristas que treinam no mesmo grupo com o mesmo mestre tendem a desenvolver um jogo parecido, mas será que não existe um limite para a fabricação de robôs? O fisiotipo, o desenvolvimento dos músculos e de sua elasticidade e até mesmo o temperamento do(a) camarada, não estabeleceriam um limite para o método?
Esse assunto é fascinante porque toca num tema muito caro a nós capoeiristas: a liberdade de desenvolver um jogo próprio e de encontrar a sua individualidade na vadiação. Segundo o discurso de todos os mestres -- mesmo o daqueles que utilizam os métodos mais autoritários -- este seria o objetivo de todo o capoeirista.
È claro que, na maioria das vezes, o que acontece é que a pessoa acaba adaptando os movimentos ensinados pelo mestre à sua constituição física, o que não deixa de ser uma forma de desenvolver o próprio jogo.
Porém, o mais interessante é que, muitas vezes, o limite ao método é dado por aspectos que estão fora do controle do aluno. Temperamento e fisiotipo são coisas que podem ser trabalhadas, mas que não podem ser modificadas. Então, muitas vezes, a resistência ao método é surda e aparece na forma de uma insatisfação difusa para com o professor ou mestre; ou mesmo sob a forma do não-aprendizado de determinados movimentos ou de uma postura de jogo exigida pelo grupo.
Ora, então, a adaptação do aluno a um grupo tem a ver com alguma correspondência entre fatores de sua personalidade que ele não pode mudar e a forma de ensino do grupo ou do mestre. Assim, idealmente, a escolha de um grupo deveria ser fruto de afinidades eletivas, diria o escritor alemão. “O semelhante atrai o semelhante”, diria o mestre Pombo de Ouro.
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Tenho um camarada bem longilíneo que passou anos treinando num grupo que repetia todo dia aú com a cabeça no chão. Esse colega até se esforçou, mas até hoje não consegue fazer muito bem esse movimento. Assim, meu colega pode ter sido ensinado de uma forma não adequada ao seu temperamento, seu fisiotipo ou ao seu ritmo de aprendizagem. Convenhamos que, para uma pessoa alta, o movimento de colocar a cabeça no chão é mais problemático do que para um baixinho e pode até mesmo ensejar situações de jogo que lhe seriam muito desfavoráveis.
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O método de ideal de ensino deveria ser muito próximo da não-existência de método, deveria aproveitar as características de cada aluno para criar um capoeirista diferente, deveria trabalhar cada aluno individualmente. Mas isto seria pedir demais, não é?
1 Comments:
Caro Moreno,
Estou a pouco tempo na capoeira e suas palavras sempre me trazem maior conhecimento a respeito.
Grande abraço.
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