sábado, novembro 11, 2006

Fragmentos irracionais sobre a capoeira

Senhores, confesso que sou um camarada que adora ficar no aconchego de sua casa e que só sai de lá tendo a certeza de que será bem acolhido no ambiente de destino. Felizmente, em certos momentos certos lugares da cidade parecem possuir uma aura capaz de capturar alguém e de fazê-lo se sentir parte de uma coletividade. Nesse blog já escrevi sobre um deles: a Torre de TV.
Um dia desses fui comprar um berimbau na barraca do Jô (ou Zeu?), antigo aluno do Vermelho Boxeur, mestre que depois da morte de Manoel dos Reis Machado ficou dando aulas em sua academia.
O Zeu corresponde ao estereótipo que fazemos do baiano: realizando todos os gestos relacionados a suas vendas num vagar envolvente, ele hinotiza o freguês. Serrar uma parte rachada da verga do berimbau, colocar um barbante numa cabaça, ensinar com carinho uma criança a tocar são bento grande de angola e contar histórias da época em que ganhou a medalha de ouro num capeonato de luta de capoeira, tudo isso acaba fazendo a gente se esquecer do ritmo diário da vida cotidiana e pensar como estamos afastados da lentidão original da existência (se é que ela um dia foi lenta).
Nesse dia, fiquei tocando o berimbau que eu comprei durante mais de uma hora sentado na mureta das fontes de água em frente à Torre. Nunca tinha ficado por tanto tempo naquele lugar, nunca tinha me sentido tão parte dele, tão absorvido pelo ambiente da feira e pelo toque do meu berimbau, nunca tinha me exposto dessa maneira à minha cidade. Poucas vezes, desde que a deixei por ano e meio a alguns anos, a amei tão intensamente.
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O relato daquele amigo meu sobre o grupo em que treinou, me lembrou de rituais de batizado que já presenciei. Me lembro da comemoração dos 30 anos de capoeira de um mestre daqui de Brasília. Veio gente de seu grupo do Amazonas, do Tocantins e até do México e o encerramento do evento foi marcado, não por acaso, para o dia dos pais. Após a roda final, os mestres e professores do grupo fizeram declarações de amor ao seu mestre e chamaram-no de pai. Foi emocionante. Até eu chorei, logo eu que nem era do grupo e não conhecia muita gente entre os presentes.
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Tenho muito contato com o mestre Pombo de Ouro, e ele vive me cobrando que eu tire fotos dos eventos de que participo. Agora é que percebo que a sua preocupação é a de que eu construa uma espécie de mitologia individual na capoeira, uma narrativa que dê sentido à minha experiência na vadiação. A preocupação do Mestre Pombo com a história individual do capoeirista, com a sua linhagem e sua ancestralidade faz parte de sua concepção de capoeira como sendo uma corrente infinita que nunca se rompe e que tem como elos cada capoeiristazinho por pior que ele jogue. Estaríamos participando de um fluxo em direção ao futuro. É um consolo (poderoso) contra a morte.
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Não é algo completamente irracional a nossa relação com a brincadeira? No caso dos domingos na Torre, buscamos o pertencimento a uma cidade; no caso de uma roda de capoeira, o estar junto a um grupo de pessoas que estão lá somente para interagir, ou, para alguns, a ligação a uma árvore genealógica que te liga aos velhos mestres, já mitificados, e, para outros, até à África. De repente é isso que faz com que permaneçamos muito tempo em um grupo de capoeira cuja forma de encarar o jogo não é bem a nossa, ou que nós admitamos assistir a um documentário meia boca sobre um dos pais fundadores da brincadeira. (In)Felizmente não tem nada a ver com a razão.
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