O transe capoeirano e a busca da vertigem II
Alguns mestres, como o mestre Pombo, ligam a capoeira à umbanda. Na verdade, essa ligação depende somente da crença do praticante. A vadiação baiana ou a capoeira carioca eram praticadas em contextos de recreação, que não tinham a ver com religião. Outras lutas produzidas pela diáspora africana também (como escreve Matias Assunção).
Como frisei na última postagem, a vertigem é como que um instinto com o qual o homem tem de aprender a conviver. Podemos dar vazão a ele dançando, jogando capoeira, brincando na montanha-russa, saltando de bungee-jump, fazendo rapel e até consumindo drogas. Isso são algumas formas que a vertigem assume nas sociedades modernas.
Por outro lado, sabemos que existem religiões (as afro-brasileiras, por exemplo) que o erigem como elemento central de seu sistema de idéias; e sociedades (tradicionais) em que a vertigem ocupa um lugar proeminente. Essas são outras formas segundo as quais a diversidade humana lida com a instituição do transe.
Para mim, o grande lance da capoeira é o controle do transe, a aliança entre ilinx (vertigem) e agôn (competição). E isso é algo que comporta tanta religião quanto dançar um forró ou jogar futebol. Na minha concepção, a capoeira como qualquer esporte, pode ajudar no auto-conhecimento ou mesmo no conhecimento das sociedades humanas.
Existem cronistas esportivos fantásticos que sabem como falar de futebol e da existência humana, vista como tragédia ou mesmo como epopéia, como Nelson Rodrigues. Mas isso não quer dizer que devemos transformar o futebol numa religião. Tratar a capoeira como religião é uma forma de mistificá-la, criando uma mais uma "seita pop" ou mesmo de transformá-la numa ideologia autoritária de uma franquia multinacional, capaz de justificar alguns fanatismos. Na verdade, o maior perigo para o aluno na capoeira é o culto à figura carismática do mestre, que hoje em dia se mistura com os objetivos empresariais do cultuado.
Admiro a opinião do mestre Pombo, segundo a qual o ser humano se mostra como ele realmente é na roda de capoeira, ou seja, auto-controle, nervosismo, agressividade, paciência, dedicação aos treinos são qualidades da pessoa que acabam sendo mostrados numa roda e acabam sendo meios de auto-conhecimento.
Acontece que, segundo a tradição afro-brasileira, tais qualidades podem ser produzidas por forças externas ao indivíduo: entidades que povoam o mundo sobrenatural e que têm influência sobre os homens. Segundo o pensamento ocidental, essas forças não seriam externas, são oriundas do próprio indivíduo, do seu subconsciente ou expressão dos arquétipos coletivos da humanidade. Na verdade, o que se evidencia aqui é uma diferença entre um sistema de psicologia ocidental e outro de matriz afro. Duas idéias diferentes de indivíduo, mas que, em alguns momentos, possuem semelhanças.
Moreno
1 Comments:
Essas diferenças teriam raiz na existência, na sociedade brasileira, de estratos onde a modernidade penetrou com intensidades diferentes?
Se bem que as religiões afro no Brasil relacionam-se bem com a modernidade: estão organizadas em federações, possuem editoras de livros e discos e lançam revistas mensais. Elas devem viver uma dualidade parecida com a da capoeira. Aspectos tradicionais e modernos das mesmas devem viver em luta em seu interior, como escreve Renato Ortiz.
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