terça-feira, maio 16, 2006

Capoeira na Polônia

Amigos, sei que voltei sentimental de minha viagem à Europa, mas é porque, para mim, toda a viagem deve ser uma descoberta. Não só de uma outra cidade, mas também de si mesmo. Assim como uma cidade se doa ao viajante, ele também se doa a ela, se expondo a diversas situações desconhecidas, descobrindo qualidades que nem mesmo ele sabia possuir. Pois cada dobrar de esquina é um enigma. E esta relação não é simples, não. O viajante nem sempre está disposto a se arriscar, a se entregar.
Lisboa foi minha cidade-mulher. Porém, fui infiel. Cracóvia também é apaixonante, e mais: lá eu estava só, e portanto mais sensível aos encantos do lugar. A cidade possuía uma personalidade mais alegre -- essa foi a minha primeira impressão -- não sei se foi porque a conheci em dia de feriado e ela estava usando suas roupas mais coloridas. Tinha também um não sei quê de ex(r)otismo que o brasileiro imagina numa menina do Leste Europeu recém libertada da Cortina de Ferro.
Realmente, Cracóvia é uma cidade que possui um clima menos carregado do que sua irmã Varsóvia. É dominada por estudantes e não sofreu tanto quanto a outra com a II Guerra. Varsóvia está cheia de momumentos que lembram os mártires do Gueto e de regiões inteiras que foram reconstruídas depois de bombardeadas pelos alemães. Ela ainda mostra cicatrizes do que foram a guerra e o fechamento do período comunista. É uma cidade um pouco complexada, coitada. Mas grande parte de sua beleza está justamente no fato de ter sobrevivido e de ter sido foi tão amada a ponto de ser reconstruída.
Mas esse Blog é sobre capoeira. Então vamos a ela! Em Varsóvia, tive o privilégio de ficar hospedado na casa do mestre Jorge e da instrutora Ju. Participei de algumas aulas e rodas dos dois e foi assim que percebi a importância do método de treinamento criado na década de 60 pelo Senzala na expansão da brincadeira. Foi tal metodologia que tornou possível a formação de capoeiristas em países e contextos sociais e culturais --mesmo dentro do Brasil-- diferentes daquele da vadiação baiana ou das maltas do Rio de Janeiro. Os alunos do grupo de Varsóvia não têm nada a dever aos alunos do meu núcleo de Brasília, por exemplo.
Nas palavras do próprio mestre Jorge, eles estão muito bem tecnicamente, mas talvez falte ainda um pouco de malícia. No entanto, mesmo nesse quesito eles não estão muito atrás dos brasileiros, pois uma das características do método da capoeira esportiva --como já apontou Alejandro Frigério há 20 anos-- é a valorização da técnica e da plasticidade em detrimento da mandinga. Ganha-se de um lado, perde-se de outro.
Porém, o mesmo Jorge ainda confessa sentir falta de um jogo mais malicioso, apesar de ter rodado a Europa inteira em encontros e festivais de capoeira. O problema talvez seja que eles não têm tanto acesso a outras fontes de malícia: as rodas de rua, mais comuns no Brasil que na Europa. Isso deve se modificar em alguns anos com um maior desenvolvimento da capoeira naquele continente.
Encerrando esta postagem, agradeço novamente ao mestre Jorge pela hospedagem e pelas conversas sobre capoeira regadas a cerveja polonesa. Elas foram mais importantes do que os treinos, as rodas e as conversas com alguns de seus alunos. O Jorge é um cara que tem idéias bem definidas sobre a capoeira e como ela deve ser ensinada. Tive conhecimento de muita coisa que acontece nos bastidores da brincadeira mas que são parte importante da sua história. Fui até um confidente com quem ele falou de projetos futuros. Conhecer as histórias de bastidores é interessante porque evita a idealização de personagens, de grupos e de estilos de jogo, nos torna mais realistas e conscientes no meio da vadiação.
Ressalto o privilégio de ter sido interlocutor do mestre lembrando que ele não é um qualquer, hoje o Jorge é referência para a capoeira da Polônia, qualquer outro que chegar lá vai sofrer uma comparação com seus altos padrões, não só de treino mas também de comprometimento profissional. Esse contato mais pessoal de um mestre tão importante com um aluno sobre a sua concepção de capoeira nãoi tem preço. Valeu a pena ter viajado uns 15 mil quilômetros para realizá-lo.

Moreno