O transe capoeirano e a busca da vertigem
Caros leitores, nas postagens anteriores toquei no assunto do "transe capoeirano" e na mistificação criada sobre ele no mundo da capoeira. Pois bem, o objetivo desta postagem é tentar esclarecer melhor o que seria o "transe capoeirano" de modo a desmistificar um pouco essa idéia, que pode ser aproveitada para exaltar exageradamente uma qualidade da capoeira que não é rara no mundo dos jogos e das atividades humanas.
Tive contato com essa expressão pela primeira vez no site do Dr. Decânio que dizia que o praticante de capoeira "alcança um estado modificado de consciência em que o Ser se comporta como parte integrante de conjunto harmonioso em que se encontra inserido naquele momento (...) O capoeirista deixa então de perceber a si mesmo como individualidade consciente, fusiona-se ao ambiente em que se desenvolve o jogo de capoeira". Por vezes, o mesmo autor coloca o transe capoeirano como algo próximo de uma experiência mística e religiosa.
Recentemente, li o livro de um sociólogo chamado Roger Caillois intitulado Os homens e os jogos - A máscara e a vertigem. Em linhas gerais, Caillois divide os jogos segundo quatro características básicas que têm a ver com quatro instintos presentes nos seres humanos: a competição, busca pela sorte, o disfarce e a vertigem.
Os jogos/brincadeiras competitivos são aqueles em que cada participante depende somente de seus próprios meios para derrotar os oponentes. Como exemplo, o estudioso cita as corridas do atletismo e, no campo da formação das sociedades humanas, tal instinto seria básico na sociedade moderna capitalista.
Os jogos de azar são aqueles em que o participante não tem nenhum controle sobre o seu desfecho. A roleta e os dados são exemplos clássicos. Tal qualidade apareceria freqüentemente associada ao princípio da competição na estrutura das sociedades modernas, onde os indivíduos lutam contra suas limitações de nascimento e riqueza (determinadas por fatores sobre os quais eles não possuem controle) ou mesmo utilizam-nas para ascender socialmente.
Os jogos de disfarce são aqueles em que os participantes assumem outra identidade. Assim, as crianças brincam de casinha, de polícia e ladrão, de super-heróis. A sublimação desse instinto estaria no campo das artes dramáticas. Juntamente com a busca pela vertigem, seria a característica humana dominante nas sociedades pré-modernas, estando na base das religiões que envolvem a possessão. Nas sociedades modernas, festas como o carnaval seriam a sua expressão atual.
Por fim, os jogos que correspondem à satisfação do instinto da vertigem são aqueles em que o jogador busca a desorientação espacial e temporal, realizando-as numa espécie de transe hipnótico. São exemplos desse tipo de jogo/brincadeira a montanha-russa, o bungee jump e o carrossel dos parques de diversões. As religiões de xamânicas e de possessão corresponderiam à sublimação dessa característica humana. Nas sociedades modernas, a vazão aos instintos de vertigem aconteceria nos parques de diversões.
É nessa última categoria de jogos que Caillois coloca danças como a valsa e atividades físicas como a realização de acrobacias. Isso porque a música e os volteios interferem na percepção espacial e temporal dos dançarinos. O mesmo valendo para as acrobacias.
Tive contato com essa expressão pela primeira vez no site do Dr. Decânio que dizia que o praticante de capoeira "alcança um estado modificado de consciência em que o Ser se comporta como parte integrante de conjunto harmonioso em que se encontra inserido naquele momento (...) O capoeirista deixa então de perceber a si mesmo como individualidade consciente, fusiona-se ao ambiente em que se desenvolve o jogo de capoeira". Por vezes, o mesmo autor coloca o transe capoeirano como algo próximo de uma experiência mística e religiosa.
Recentemente, li o livro de um sociólogo chamado Roger Caillois intitulado Os homens e os jogos - A máscara e a vertigem. Em linhas gerais, Caillois divide os jogos segundo quatro características básicas que têm a ver com quatro instintos presentes nos seres humanos: a competição, busca pela sorte, o disfarce e a vertigem.
Os jogos/brincadeiras competitivos são aqueles em que cada participante depende somente de seus próprios meios para derrotar os oponentes. Como exemplo, o estudioso cita as corridas do atletismo e, no campo da formação das sociedades humanas, tal instinto seria básico na sociedade moderna capitalista.
Os jogos de azar são aqueles em que o participante não tem nenhum controle sobre o seu desfecho. A roleta e os dados são exemplos clássicos. Tal qualidade apareceria freqüentemente associada ao princípio da competição na estrutura das sociedades modernas, onde os indivíduos lutam contra suas limitações de nascimento e riqueza (determinadas por fatores sobre os quais eles não possuem controle) ou mesmo utilizam-nas para ascender socialmente.
Os jogos de disfarce são aqueles em que os participantes assumem outra identidade. Assim, as crianças brincam de casinha, de polícia e ladrão, de super-heróis. A sublimação desse instinto estaria no campo das artes dramáticas. Juntamente com a busca pela vertigem, seria a característica humana dominante nas sociedades pré-modernas, estando na base das religiões que envolvem a possessão. Nas sociedades modernas, festas como o carnaval seriam a sua expressão atual.
Por fim, os jogos que correspondem à satisfação do instinto da vertigem são aqueles em que o jogador busca a desorientação espacial e temporal, realizando-as numa espécie de transe hipnótico. São exemplos desse tipo de jogo/brincadeira a montanha-russa, o bungee jump e o carrossel dos parques de diversões. As religiões de xamânicas e de possessão corresponderiam à sublimação dessa característica humana. Nas sociedades modernas, a vazão aos instintos de vertigem aconteceria nos parques de diversões.
É nessa última categoria de jogos que Caillois coloca danças como a valsa e atividades físicas como a realização de acrobacias. Isso porque a música e os volteios interferem na percepção espacial e temporal dos dançarinos. O mesmo valendo para as acrobacias.
Ora, nós capoeiristas sabemos que faz parte das características básicas da nossa brincadeira (tal como das acrobacias) as inversões do alto pelo baixo -- penso nos movimentos como os vários tipos de aú, o macaco, a bananeira, os balões cinturados e os saltos mortais -- e da frente pelas costas (meia-lua de compasso, armada, queixada, rolê e outros movimentos que envolvem giros).
Com a valsa, a capoeira teria em comum -- além das inversões da frente pelas costas -- o princípio do preenchimento dos espaços vazios deixados pelo parceiro de jogo/dança, de que fala muito o mestre Pombo de Ouro. Tal príncípio aparece muito bem ilustrado naquele famoso jogo entre João Grande e João Pequeno em "Dança da Guerra", ou nas próprias seqüências do mestre Bimba. Além disso, a presença da música no nosso brinquedo também é uma característica fundamental de sua estrutura. É a música e o seu ritmo que define a velocidade e a própria natureza do jogo, mais competitivo ou cooperativo, por exemplo.
Portanto, é no campo dos jogos que satisfazem ao instinto da vertigem que eu colocaria a capoeira. O transe capoeirano de que fala Dr. Decânio corresponde à vertigem, ao ilinx, que é o termo utilizado por Caillois para denominar tal instinto. E mais, o transe capoeirano poderia estar conjugado ao instinto de competição, já que o próprio autor argumenta que, freqüentemente, os instinto aparecem associados aos pares em várias atividades humanas. Essa combinação é que daria o caráter de arte-marcial à nossa prática.
Por enquanto é isso. Pretendo voltar ao assunto em futuras postagens.
Com a valsa, a capoeira teria em comum -- além das inversões da frente pelas costas -- o princípio do preenchimento dos espaços vazios deixados pelo parceiro de jogo/dança, de que fala muito o mestre Pombo de Ouro. Tal príncípio aparece muito bem ilustrado naquele famoso jogo entre João Grande e João Pequeno em "Dança da Guerra", ou nas próprias seqüências do mestre Bimba. Além disso, a presença da música no nosso brinquedo também é uma característica fundamental de sua estrutura. É a música e o seu ritmo que define a velocidade e a própria natureza do jogo, mais competitivo ou cooperativo, por exemplo.
Portanto, é no campo dos jogos que satisfazem ao instinto da vertigem que eu colocaria a capoeira. O transe capoeirano de que fala Dr. Decânio corresponde à vertigem, ao ilinx, que é o termo utilizado por Caillois para denominar tal instinto. E mais, o transe capoeirano poderia estar conjugado ao instinto de competição, já que o próprio autor argumenta que, freqüentemente, os instinto aparecem associados aos pares em várias atividades humanas. Essa combinação é que daria o caráter de arte-marcial à nossa prática.
Por enquanto é isso. Pretendo voltar ao assunto em futuras postagens.
Moreno
3 Comments:
Alguns leitores me entenderam como se eu estivesse fazendo uma apologia á vertigem na capoeira. Não é bem isso. Na verdade, a capoeira pode até ser interpretada como um jogo onde o transe deve ser controlado, sob pena de não haver interação entre os camaradas.
Olá, Moreno,
1)Qualquer jogo, inclusa a Capoeira, tem essas "características" né: a competição, busca pela sorte, o disfarce e a vertigem.?!
2) Do porque classifiar como arte marcial, há aquele critério de já ter sido usada numa guerra.
Achei legal seus textos.
Recentemente, li a tese de doutorado do arquiteto e mestre de capoeira Cláudio Queiroz, também conhecido como mestre Cláudio Danadinho -- fundador do grupo Senzala e precursor da capoeira brasiliense. Na tese, Queiroz expõe uma outra forma de interpretar o "transe capoeirano", relacionando-o com o sincretismo e a mestiçagem que seriam a base da própria cultura brasileira. A perda das fronteiras do próprio eu e sua fusão com o outro estaria na raiz mesma do ser brasileiro e seria epitomizada pela capoeira.
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