Alguma historiazinha da capoeira
Camaradas, é sempre muito instrutivo conversar com os mais antigos, você fica sabendo aspectos da história da capoeira não através de livros, mas através de seus próprios personagens. Como escrevi em uma postagem anterior, é com eles que se conhece aquele lado mais prosaico da capoeira, aquelas histórias com "h" minúsculo que, no final das contas, têm a ver com fatos fundamentais da história da brincadeira.
Pois bem, numa conversa com o mestre Pombo de Ouro, fiquei sabendo que a primeira vez que ele viu o "leque" na capoeira foi numa "Grande Roda" na década de 80. A "Grande Roda" era talvez o maior evento de capoeira do DF, organizada, acho que anualmente, pelo mestre Zulu, contava com a participação de capoeiristas de todo Brasil.
Fiquei pensando sobre isso: pô! o leque, então, não tem muito mais de 20 anos! É um movimento novíssimo na capoeira e deve ter surgido nos anos 80 a partir de influências da ginástica olímpica, da dança moderna ou das artes marciais orientais. É interessante pensar que os mestres mais antigos nunca deram tal golpe não porque não conseguiam, mas porque ele não existia! Foi incorporado pela capoeira depois de seu auge físico! Hoje em dia, em qualquer roda que se vá, no Brasil ou no exterior, podemos ter a certeza de que veremos pelo menos um leque, e feito por qualquer aluno mediano. Ou seja, tal movimento é uma técnica corporal que originalmente não fazia parte da capoeira mas que por ela foi incorporada.
Outro golpe que deve ter mais ou menos a mesma origem é o "martelo rodado". Quem assiste à novela "Sinhá Moça" pode ver, na abertura, as sombras de dois escravos jogando capoeira: um deles solta um martelo rodado. Ora, não sou especialista em história da capoeira, mas acho que é muito provável que nenhum cronista ou viajante de meados do século XIX tenha visto tal golpe. Sabemos através de cronistas que, no final do século XIX, existiam várias formas de golpes desequilibrantes, cabeçadas e mesmo navalhadas, mas não o martelo rodado. Segundo o professor Liberac Pires, existia mesmo uma técnica de se lançar a navalha aberta amarrada em um cordão para que, depois de o alvo ser atingido, a mesma pudesse ser recuperada com um puxão. Era uma "navalha bumerangue"! Uma técnica que foi deixada de lado tanto pelo mestre Bimba quanto pelo mestre Pastinha na codificação da regional e da angola. Isso faz até pensar em quanta coisa foi abandonada nesse tempo todo...
Estou escrevendo sobre a história dessas técnicas porque caiu em minhas mãos o texto de uma conferência que o antropólogo Marcel Mauss (1872-1950) deu em 1934, no qual o autor cunha o termo "técnicas corporais" para designar " as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo". Ou seja, para ele, o próprio corpo é criado pela cultura, pela sociedade em que os homens vivem. E ele cita exemplos de técnicas corporais que vão do mundo do esporte até as sociedades tradicionais.
Existe mesmo um exemplo que relaciona a magia e uma técnica da corrida entre os aborígines australianos que lembra muito a técnica de obtenção de resistência na capoeira: cantando repetidamente uma canção durante a perseguição a sua presa, o caçador consegue forças para vencer o animal pelo cansaço! Não é isso o que alguns chamam de "transe capoeirano"? O esquecimento de si mesmo e, portanto, do próprio cansaço pelo capoeirista, propiciado pelas músicas e pelo ritmo do berimbau?
Segundo esse mestre da antropologia, o processo pelo qual as técnicas corporais são preservadas chama-se "imitação prestigiosa": as pessoas imitam atos bem sucedidos que elas viram serem efetuados por outros em quem confiam ou que possuem autoridade sobre elas. Só que a partir desse processo não acontece apenas a preservação de técnicas corporais, mas também a sua transformação. Vide o exemplo do leque e do martelo rodado.
Pois bem, numa conversa com o mestre Pombo de Ouro, fiquei sabendo que a primeira vez que ele viu o "leque" na capoeira foi numa "Grande Roda" na década de 80. A "Grande Roda" era talvez o maior evento de capoeira do DF, organizada, acho que anualmente, pelo mestre Zulu, contava com a participação de capoeiristas de todo Brasil.
Fiquei pensando sobre isso: pô! o leque, então, não tem muito mais de 20 anos! É um movimento novíssimo na capoeira e deve ter surgido nos anos 80 a partir de influências da ginástica olímpica, da dança moderna ou das artes marciais orientais. É interessante pensar que os mestres mais antigos nunca deram tal golpe não porque não conseguiam, mas porque ele não existia! Foi incorporado pela capoeira depois de seu auge físico! Hoje em dia, em qualquer roda que se vá, no Brasil ou no exterior, podemos ter a certeza de que veremos pelo menos um leque, e feito por qualquer aluno mediano. Ou seja, tal movimento é uma técnica corporal que originalmente não fazia parte da capoeira mas que por ela foi incorporada.
Outro golpe que deve ter mais ou menos a mesma origem é o "martelo rodado". Quem assiste à novela "Sinhá Moça" pode ver, na abertura, as sombras de dois escravos jogando capoeira: um deles solta um martelo rodado. Ora, não sou especialista em história da capoeira, mas acho que é muito provável que nenhum cronista ou viajante de meados do século XIX tenha visto tal golpe. Sabemos através de cronistas que, no final do século XIX, existiam várias formas de golpes desequilibrantes, cabeçadas e mesmo navalhadas, mas não o martelo rodado. Segundo o professor Liberac Pires, existia mesmo uma técnica de se lançar a navalha aberta amarrada em um cordão para que, depois de o alvo ser atingido, a mesma pudesse ser recuperada com um puxão. Era uma "navalha bumerangue"! Uma técnica que foi deixada de lado tanto pelo mestre Bimba quanto pelo mestre Pastinha na codificação da regional e da angola. Isso faz até pensar em quanta coisa foi abandonada nesse tempo todo...
Estou escrevendo sobre a história dessas técnicas porque caiu em minhas mãos o texto de uma conferência que o antropólogo Marcel Mauss (1872-1950) deu em 1934, no qual o autor cunha o termo "técnicas corporais" para designar " as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo". Ou seja, para ele, o próprio corpo é criado pela cultura, pela sociedade em que os homens vivem. E ele cita exemplos de técnicas corporais que vão do mundo do esporte até as sociedades tradicionais.
Existe mesmo um exemplo que relaciona a magia e uma técnica da corrida entre os aborígines australianos que lembra muito a técnica de obtenção de resistência na capoeira: cantando repetidamente uma canção durante a perseguição a sua presa, o caçador consegue forças para vencer o animal pelo cansaço! Não é isso o que alguns chamam de "transe capoeirano"? O esquecimento de si mesmo e, portanto, do próprio cansaço pelo capoeirista, propiciado pelas músicas e pelo ritmo do berimbau?
Segundo esse mestre da antropologia, o processo pelo qual as técnicas corporais são preservadas chama-se "imitação prestigiosa": as pessoas imitam atos bem sucedidos que elas viram serem efetuados por outros em quem confiam ou que possuem autoridade sobre elas. Só que a partir desse processo não acontece apenas a preservação de técnicas corporais, mas também a sua transformação. Vide o exemplo do leque e do martelo rodado.
E mais, do contato entre técnicas corporais diferentes é que surgem variações dentro de uma mesma prática esportiva. Por exemplo, é conhecidíssima uma foto do mestre Bimba novinho gingando lá pelos idos dos anos 30. Quem não viu, entre no sítio do Dr. Decânio. Nela, vemos o mestre gingando encolhido e relaxado, como hoje em dia esperaríamos que jogasse um angoleiro. Isso é porque a técnica corporal da ginga de mestre Bimba era mais próxima da vadiação das classes populares de Salvador do que da capoeira esportiva dos dias de hoje! Matias Assunção sugere a possibilidade de que o centro de gravidade da capoeira regional teria sido deslocado para cima pelos alunos de Bimba, a maioria não-ligados à tradição da vadiagem baiana. Olha aí um exemplo de variação e transformação das técnicas corporais! Hoje em dia, o braço tem que proteger o rosto, a perna da frente tem que flexionar tantos graus... e por aí vai . E se não fizer, tá lascado, apanha ou é considerado antiquado!
A potencialização da imitação prestigiosa pode ter efeitos meio complicados na capoeira. Em conversas com alguns mestres, fiquei sabendo que alguns grupos calcam todo o seu modelo de capoeira em determinados alunos que se destacam, numa espécie de imitação prestigiosa elevada ao quadrado, porque sistematizada. Isso pode prejudicar fisicamente e mesmo psicologicamente os alunos, já que nem todos possuem as mesmas características físicas do modelo: explosão muscular, resistência da articulação, estrutura corporal e flexibilidade, para citar algumas.
Por hoje é só, senhores. Depois de ter escrito essa postagem que tem até antropologia, não agüento mais nada. Vou desligar a máquina e utilizar a técnica corporal do cochilo de boca aberta sentado em poltrona. Ainda assim, espero ter contribuído um pouco mais para a sua compreensão da nossa brincadeira.
Moreno
2 Comments:
Na verdade, a potencialização da imitação prestigiosa é muito utilizada no ensino de capoeira atualmente. Geralmente mestres e professores baseiam suas aulas em mostrar movimentos que eles mesmos realizam na roda, propondo a sua imitação.
Uma razão que pode ser apontada para o espalhamento da capoeira é o descobrimento de novas possibilidades para os movimentos do corpo. Novas técnicas corporais podem trazer consigo novas formas de ver o mundo, um aú, uma cocorinha, nesse sentido, são movimentos subversivos.
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