sábado, dezembro 09, 2006

Uma tradição que queremos esconder

Camaradas, muitas pessoas têm a imagem da capoeira como uma manifestação cultural pura e inocente, livre de jogos de poder e de disputas que parecem ter a ver com vaidade. Quando converso com pessoas de fora do meio sobre esse assunto, elas chegam a ficar espantadas: lutas por espaço e por prestígio são coisas que muitos julgam não existir no meio da brincadeira. Muitos pensam que isso é uma coisa recente, da época atual em que uma tradição de respeito mútuo teria se perdido. Mas não é verdade, a competição por prestígio e pelo poder de influenciar a maior quantidade de capoeiristas possível é também parte da tradição da brincadeira.
Basta lembrarmo-nos da disputa que envolveu os mestres Pastinha e Noronha no surgimento mesmo do Centro Esportivo de Capoeira Angola nos anos 40. Ou da inimizade entre dois mestres famosos da Salvador dos anos 60 fomentada pela competição por incentivo financeiro da Secretaria de Turismo da Bahia. Segundo Waldeloir Rêgo, esses dois mestres chegaram a encomendar despachos um contra o outro.
É interessante a gente ficar consciente dessas disputas de poder porque elas influenciam até no estilo de capoeira dominante de cada época. Num churrasco aqui em Brasília, um camarada paraense me falou mais ou menos o seguinte: "eu era sarobeiro, treinava com um grupo lá no Pará que tinha o seguinte padrão de ginga: a cada troca de base batia duas palminhas. Depois chegou na cidade um cara do Rio de Janeiro, aluno de um mestre que ninguém lá no Pará conhecia, dando porrada em todo mundo e mudando o estilo da ginga e da movimentação. O resultado foi que passei a treinar com esse grupo carioca."
Em outro estado do Norte, ouvi de um mestre importante que ele teve de aceitar um desafio de porrada de um capoeirista recém-chegado na sua cidade. Foi uma batalha não por dinheiro -- porque numa cidade pequena não dá mesmo para ganhar muito dando aula de capoeria-- mas por prestígio dentro do meio capoeirístico, pela manutenção de um domínio espacial.
No sul, ouvi a confissão de um mestre histórico que disse ter ficado até psicologicamente afetado pelo clima muito competitivo de disputa entre seu grupo local e outro que estava se expandindo nacionalmente. Segundo ele, o nome desse grupo não era nem mencionado dentro do seu círculo de alunos. Isso parece ter servido como um exorcismo simbólico do grupo rival do mundo da capoeira. O rival era tão odiado que era demonizado.
Esse padrão parece ter sido muito forte no Brasil no final dos anos 80 até o começo dos anos 90. Talvez porque grupos com uma política agressiva de expansão meio que desarranjaram a divisão espacial da capoeira no país inteiro. Uma capoeira mais marcial e até desleal deve ter se desenvolvido nesse contexto, numa época em que houve desavenças que chegaram às vias de fato fora da roda.
No exterior, essa disputa permanece, porém com uma característica menos física, mas com uma violência simbólica muito grande. A estudiosa portuguesa Ana Jaqueira compara a expansão da capoeira pelo mundo com um projeto colonial, uma vingança do colonizado sobre o colonizador, com uma ideologia clara de dominação cultural e de manipulação dos novos adeptos. A capoeira seria um "polvo brasileiro" espalhando seus tentáculos pelo mundo e dividindo-o em possessões coloniais.
Camaradas, por essa semana é só. Espero não ter chateado ninguém mencionando um lado de nossa tradição que não é aquele que queremos mostrar.
Moreno