quarta-feira, novembro 29, 2006

Correções e complementações

Caros leitores, este humilde cronista pede desculpa por alguns erros que cometeu em textos passados e aproveita para corrigir alguns deles. Segue também algum complemento das crônicas anteriores.
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Na postagem "Ô sim, sim, sim/ô não, não , não" faltou a representação do toque de São Bento Grande da Regional. Então lá vai: dom dom dim / dom "tch" dim. Onde o "tch" é o chiado do arame semi-preso.
Colocado assim no corpo do toque, esse som que não tem identidade introduz uma espécie de breque no ritmo. É a dubiedade, a malícia da capoeira que ele invoca dessa maneira, ao mesmo tempo que leva o toque mais "prá frente", aumentando a sua característica de competição e luta.
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Na crônica sobre o livro de André Lacê, escrevi que mestre Bimba nunca teria falado que capoeira é luta. Não é verdade. Existem muitas fontes, principalmente artigos de jornal, que mostram que mestre Bimba tentou instituir a capoeira regional primeiro como luta de ringue já nos anos 30. Tais fontes foram trabalhadas pelo pesquisador Jair Moura e pelo mestre Itapoã.
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Pensando bem, a prática, muitíssimo comum hoje em dia, de se tirar fotos ao lado de mestres e pessoas importantes do meio da capoeira corresponde não só à busca da entrada num mundo mítico criado pela brincadeira mas também a uma busca de acúmulo de prestígio.
Cada foto tirada ao lado de um mestre famoso é interpretada como um reconhecimento que o fotografado obtém do mestre lendário. É uma espécie de autorização vinda de uma figura superior da escala hierárquica. A magia, o carisma e a autoridade desse mestre acabariam legitimando o discípulo retratado com ele.
Na volta da viagem, o discípulo pode expor a tal foto e obter entre seus pares o reconhecimento da autoridade que de que o mestre lhe investiu. Poderá dizer que tem "mais bagagem" de capoeira do que outros colegas.
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Um dos pecados do documentário sobre o mestre Bimba foi o de não ter entrado nas polêmicas que envolvem a capoeira regional. Até que ponto ela foi baseada na ginástica nacional? A regional é somente um projeto incompleto de uma luta que se desvirtuou em exibição? Apenas a capoeira angola pastiniana é que seria a "legítima capoeira tradicional"? Como os megagrupos e franquias de capoeira de hoje estão determinando a organização da brincadeira?

sábado, novembro 25, 2006

Escrita em transe

Amigos e amigas, estou escrevendo essas linhas ao som do Cd do Curso de Capoeira Regional de mestre Bimba. E é isto que vai determinar o conteúdo da presente crônica. Já escrevi no meu blog sobre alguns aspectos irracionais da capoeira, o principal deles sendo uma sensação de esquecimento da própria individualidade, um mergulho na coletividade da roda causado pela música. O Dr. Decânio chama isso de "transe capoeirano". Pois bem, estou escrevendo nesse estado de transe e, portanto, devo ser perdoado por alguma coisa mais estranha que surgir na crônica de hoje.
Fui recentemente a um batizado no estado do Tocantins. Lembro-me de que o evento transcorreu maravilhosamente bem e, no final, houve a distribuição dos certificados. Ora, meu primeiro pensamento ao receber o “canudo” foi o de guardar imediatamente o papel que era o comprovante de que estive no evento e de que, pelo menos em tese, saí de lá um capoeirista mais experiente.
Qual não foi a minha agradável surpresa ao perceber que todos os meus colegas de encontro utilizavam o certificado como uma espécie de livro de recordações. Pediam para os mestres e as amizades recém-formadas escreverem mensagens de despedida naquele papel.
Entendi então o novo significado que eles davam para o diploma: tão importante quanto a assinatura dos mestres era a comprovação de que houve a formação de amizades, de que pessoas travaram conhecimento e influenciaram umas as outras, tenha sido na roda, no papoeira ou numa mesa de bar. No final das contas, despedia-se do batizado com a face do certificado completamente preenchida por assinaturas e mensagens.
Assim, sob um ponto de vista oficialista, o documento estava adulterado; porém, sob o ponto de vista mais importante – o da vivência daquelas pessoas -- era o contrário, o que valia do encontro era aquilo mesmo: a sensação de que se fez a diferença para alguém, de que se está a salvo do esquecimento total na memória das outras pessoas, de que houve um momento de eternidade naquele espaço de três dias.

sexta-feira, novembro 24, 2006

Mestre Bimba, Pelé e Michael Jordan

Senhores, não pretendo esconder de ninguém que me inspiro em nomes famosos da crônica desportiva para escrever minhas postagens. Nelson Rodrigues, Tostão e Juca Kfouri são alguns de meus modelos, pois sei que muitas das coisas que acontecem no meio do futebol -- na verdade de todos os esportes -- também acontecem, em algum grau no meio capoeirístico.
Dito isso, passo à crônica de hoje. Estive num batizado semana passada onde foi discutida a questão dos apelidos na capoeira. Um determinado mestre se mostrou indignado com o batismo de novos "Bimbas", "Pombos", "Deputados", "Aberrês" e outros nomes de mestres famosos e históricos. Em contraposição, um professor disse que não via nada de mais em querer homenagear a memória de um personagem importante da capoeira batizado um de seus alunos com seu nome.
Acontece que essa é uma questão insolúvel que envolve uma característica determinante do esporte: a sacralização de seus ídolos. De que forma os craques do passado devem se lembrados: pela sua constante evocação e pela espera por algo que seria a sua volta ou pela ênfase na sua singularidade e na nossa eterna orfandade?
Cada uma dessas formas de responder a tal dilema é adotada em esportes como o basquete ou o futebol.
No basquetebol americano, os times costumam aposentar os números das camisas que foram usadas pelos seus maiores jogadores. Dessa maneira, o nº23 do Chicago Bulls, que pertenceu ao fenomenal Michael Jordan, não poderá mais ser utilizado por nenhum jogador daquele time, bem como o 32 do Los Angeles Lakers, associado definitivamente a Magic Johnson. A ênfase é na singularidade do mito.
Por outro lado, no futebol, essa aposentadoria da camisa do craque não foi adotada. E nem parece que o será tão cedo. Tal esporte tem uma forma diferente de lidar com a sacralização dos seus expoentes máximos: pela repetição dos números de suas camisas, assistimos à rememoração, à atualização de mitos do passado. Assim, o nº 10 do Santos evocará sempre Pelé, o 10 do flamengo será sempre Zico e o 7 do Botafogo, Garrincha.
Não é à toa que até recentemente, Robinho jogou com a 10 do Rei e Túlio (em meados da década de 90) com a 7 do Anjo das Pernas Tortas. Havia uma jogada de marketing, é claro, mas ela correspondia à vontade dos torcedores de ver seus heróis ressuscitados, alguns de seus mitos voltando à vida e aos gramados. É como se evocássemos constantemente o seu retorno.
Porém, essas duas formas de se lidar com a sacralização do ídolo freqüentemente se encontram misturadas.
Na NBA, os novatos mais talentosos se não jogam nos clubes por onde passaram seus modelos, geralmente adotam as camisetas com os números deles. Excetuando-se os Lakers e os Bulls, existe uma profusão de números 23 e 32 entre os times americanos. Se não me engano, o mais novo talento da Liga, Lebron James, é o 23 de seu time.
Enquanto isso, nos domínios do "esporte bretão", ficamos sempre achando que a técnica, o estilo ou o jogo dos atuais portadores das camisas dos craques do passado jamais correspondem ao modelo a que fazem referência, a repetição sendo impossível. Por vezes até surge, como no Boca Juniors argentino, a idéia de aposentar a camisa do craque.
Assim, a sacralização dos velhos mestres da capoeira gera o mesmo dilema que a mitificação dos craques do basquete ou do futebol. Uma das especificidades da bricadeira é que, numa roda, não usamos uniformes numerados.
Moreno

quinta-feira, novembro 23, 2006

"A capoeiragem no Rio de Janeiro", de André Lacê

Caros leitores, desculpem o entusiasmo desse cronista calouro que escreve quase todo dia, mas é que quero compartilhar algumas das minhas descobertas recentes no campo da história da capoeira. Atualmente, estou lendo o livro de André Lacê "A capoeiragem no Rio de Janeiro - Sinhozinho e Rudolf Hermanny" e ele realmente dá uma sacudida naquelas concepções formadas que a gente tem sobre as origens da capoeira regional.
Vale a pena citar uma passagem especial:" O nome Regional, decididamente, não foi cunhado para se contrapor a Angola, até porque ambas capoeiras eram locais, da região da Bahia; e sim para se contrapor à capoeira Nacional. Claro, em função da forte tradição da capoeira baiana e, sobretudo, do extraordinário talento de Mestre bimba, ninguém em sã consciência poderá afirmar que a Regional é cópia fiel da Capoeira praticada por Sinhozinho, Zuma e outros. Para começar, a versão regional não abriu mão nem do berimbau nem do canto, componentes que inexistem na capoeir de Zuma, Sinhozinho, Hermanny e outros." (p.89)
Apoiando-se no fato de que o Rio de Janeiro, além de ser a capital do país, também era uma metrópole que irradiava sua influência por todo o Brasil, André Lacê argumenta que a Luta Regional Baiana teve como modelo a Ginástica Nacional. E isso é sustentado por outras evidências: os primeiros alunos estudantes de medicina de mestre Bimba, principalmente o pioneiríssimo Cisnando, conheciam o método do mestre Zuma; e o próprio Manoel dos Reis Machado demonstrou que o conhecia quando deu uma entrevista, em 1936, comentando as regras que deveriam ser utilizadas quando das suas lutas com outros capoeiristas nos ringues de Salvador.
Interessantíssimas as páginas em fac-símile do método da ginástica nacional. Lacê chama atenção para o fato de que vários dos golpes catalogados tinham origem na "pernada carioca", algo próximo ao "batuque" baiano: banda de frente, banda amarrada, banda jogada, banda forçada. Esse fato, o aproveitamento dos golpes do batuque, nos era apresentado até agora como uma característica apenas da capoeira regional.
Além disso, existem indicações -- de artigos de jornais de época citados no livro -- de que já existiam no Rio de Janeiro academias da capoeiragem carioca em 1931. Ou seja, pelo menos contemporâneas do centro de cultura física do grande mestre baiano.
Outros fatos desconhecidos, pelo menos para mim, são as lutas que os "regionais" fizeram contra os "nacionais" no Rio de Janeiro em 1948. Os primeiros, representados por Fernando Perez e Jurandir, foram derrotados por Rudolf Hermanny e Luiz Aguiar, o Cirandinha. Tais derrotas teriam sido "esquecidas" pelos historiadores ligados à capoeira regional, o que teria condenado a memória da capoeira mais eficiente de Zuma e de Sinhozinho e seus alunos ao limbo.
Para completar essa resenha, devo dizer que o autor, em vários momentos, critica a ênfase dada pelos regionais da época sobre o caráter marcial da capoeira do mestre Bimba, pois tal estilo buscava se legitimar pelo discurso da eficiência, embora o caminho da folclorização e das exibições em esquetes já estivesse aberto.
Lacê também estende essas críticas aos estilos mais combativos da capoeira contemporânea que buscam se legitimar pelo uso da violência argumentando que, para provar eficiência e se atualizar tecnicamente, a capoeira que deseja ser luta deve voltar aos ringues.
Livros como esse de André Lacê trazem uma grande contribuição ao mundo da capoeira pois ajudam na desmistificação de sua história e nos fazem pensar nos embates de poder que acontecem por trás da escrita da mesma.
O livro também ajuda na compreensão da figura do grande mestre Bimba ao mesmo tempo em que torna mais claras nossas escolhas individuais no campo do brinquedo. Depois da leitura d'A capoeiragem ... fica até mais caracterizado seu projeto de modernização étnica da capoeira dentro da tradição afro-brasileira. Um projeto de capoeira-luta que teve como limitador(?) a vitalidade da vadiação baiana.
Quanto a mim... continuo hipnotizado pela dubiedade do toque da regional tal como ensinada pelo mestre Pombo de Ouro.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Postagem de batismo

Postagem de batismo

Caros leitores, fico feliz em registrar que essa é a primeira postagem inédita que vai para a minha coluna no Jornal Mundo Capoeira. A hospedagem desse site foi acertada num batizado de capoeira em Arraias - TO. Assim, não será por acaso que a crônica de estréia será um comentário sobre os bastidores daquele evento. Com essa postagem, considero a minha coluna devidamente batizada e pronta para entrar num universo mais amplo dos leitores amantes da capoeira.
Nessas viagens de capoeira, é comum encontrarmos figuras interessantes, meio malucas à primeira vista, mas capazes de provocar insights bacanas. Pois bem, nesse evento havia o encarregado das filmagens das rodas, do papoeira e do batizado em si. Acontece que esse rapaz era um evangélico estudioso do judaísmo e ele ficou entusiasmadíssimo quando viu o símbolo da capoeira regional nas camisas de alguns dos participantes do evento: a Estrela de Davi (ou o "Cinco Salomão") encimado por uma cruz e com a letra "R" no seu interior.
A partir daí, parece que um botão de liga-desliga que existia em sua cabeça foi pressionado e ele começou a "viajar": mestre Bimba e até Zumbi dos Palmares viraram judeus! Zumbi -- segundo nosso câmera -- era um judeu-africano escolhido por Deus para levar seu povo à liberdade.
Ora, acontece que as coisas não são tão simples assim. Os símbolos de uma religião podem muito bem receber outras interpretações feitas por aqueles que o acolhem. Sabemos que na Salvador do século XIX -- como escreve João José Reis -- era comum o uso de amuletos pelos africanos e seus descendentes. Tais amuletos tinham diversas origens: européia, africana, católica, islâmica ou pagã. Patuás, figas, dentes de coelho, orações islâmicas dobradas e penduradas no pescoço eram alguns deles. Tais amuletos teriam a função de espantar os maus espíritos do seu portador. Teriam poderes mágicos contra feitiços.
Segundo Mary Karash, estudiosa da vida dos escravos na cidade do Rio de Janeiro, um dos elementos principais das religiões banto seria a crença no poder mágico de determinados objetos, que podiam ser os mais variados, e até estátuas de santos católicos.
Sendo assim, cabe a afirmação: os capoeiras da cidade de Salvador interpretavam a estrela de Davi de um modo muito diverso daquele dos judeus. Talvez mesmo como uma espécie de patuá.

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Acabo de assistir a um documentário na TV sobre a influência das culturas africanas na sociedade brasileira. Em determinado momento, apareceu o presidente do Afoxé Filhos de Gandhi falando da criação desse bloco carnavalesco. Fiquei sabendo que ele foi formado em 1949 por estivadores de Salvador, a maioria filhos de santo, que quiseram homenagear o ideólogo da resistência pacífica como forma de protesto e um dos líderes da independência indiana -- acontecida no ano anterior .
Frente a esse fato, gostaria de saber que significado aquelas pessoas atribuíam às ações do líder indiano, em que ponto as idéias de Gandhi combinavam-se com as deles, em que ponto afastavam-se e por que diabos os caras acharam que Gandhi tinha a ver com o carnaval.

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Parece que esse mundo é mesmo muito louco. Um símbolo religioso ou político pode ser interpretado de várias maneiras dependendo da realidade de quem o recebe. De repente, nossos botões de liga-desliga estão sempre na posição "on". Isso até faz a gente se interessar pelo motivo do entusiasmo daquele rapaz pelo judaísmo.
Moreno

terça-feira, novembro 14, 2006

Ô sim, sim, sim / ô não, não, não

Depois da última postagem, mais pessoal e emotiva, segue esta, num tom mais comedido.
Tenho um colega advogado para quem a maior dificuldade na compreensão da capoeira é o seu aspecto ambíguo de luta e dança. De fato, já escreveram sobra a brincadeira: "luta de dançarinos e dança de gladiadores." Acontece que o mundo da lei é assim: exige o preto no branco, tons de cinza são difíceis de aceitar. O problema é que são eles que predominam no universo das manifestações ligadas à cultura popular.
Por outro lado, conheço um camarado militar que treinou na Curitiba dos anos 70 e foi muito marcado pelo estilo marcial do mestre Sergipe. O Coronel é daqueles que comungam com mestre Bimba -- "capoeira é malícia" -- em oposição à afirmação mais totalizante do mestre Pastinha -- "é tudo o que a boca come". Essa oposição é clássica: enquanto um privilegia um aspecto "positivo" da capoeira, o outro ressaltaria o seu aspecto "negativo", de aceitação da vida como ela é, com suas ambigüidades e contradições, com amizades, inimizades e falsidades. Para aquele meu camarada, capoeira é luta.
Mas o interessante é o criador da regional não ter dito algo como "capoeira é luta". Aliás, quando o disse foi justamente no momento em que recusou um desafio a seus alunos em 1946. Disse que a capoeira era uma luta muito perigosa até para estar num ringue. Era uma luta para a rua porque muito traiçoeira. De maneira semelhante, o mestre Pastinha dizia: "o capoeirista é aquele que corre para não bater". Ou seja, Bimba também se dava bem com as ambigüidades.
Contrastando com os dos grandes mestres baianos, os projetos cariocas de esportivização da capoeira do início do século passado íam na direção da perda de suas características africanas e populares e de sua ambigüidade. A Ginástica Nacional de Aníbal Burlamaqui suprimia a roda, a música, os instrumentos, as palmas e a ginga. Deixava apenas os golpes. Ora, era exatamente no que ficou de fora que residia a riqueza e a complexidade da vadiação.
A dualidade dança-luta, cooperação-competição, lúdico-agônico estaria presente em todos os componentes de uma roda de capoeira. A começar pela instrumentação. Por exemplo, nos três toques básicos do berimbau: o arame preso (ataque, capoeira positiva), o arame solto (defesa, negativa) e a corda semi-presa (a ambigüidade).
Na tradição do mestre Pastinha, o berimbau gunga toca angola (dom-dim) -- ataque, positivo --, o médio inverte (dim-dom) -- defesa, negativa -- e o viola repica e improvisa indo e voltando entre os dois anteriores -- a encarnação da malícia, da ambigüidade e indeterminação entre luta e dança. A traição a um padrão estabelecido.
Isso não se perde no São Bento Grande da Regional. O único berimbau funciona como se concentrasse toque, toque invertido e repique num instrumento, tendo ainda a função de chamar o jogo "prá frente". O toque tem duas partes e, em determinado momento, uma quebra de ritmo com a pedra semi-presa fazendo parte de sua estrutura, a malícia de que falava o mestre Bimba.
A mesma estrutura estaria presente no jogo físico: movimentos de ataque -- "capoeira positiva", como falava mestre Pastinha -- , movimentos dedefesa -- ou "capoeira na negativa" e ginga -- um momento de onde podem sair ataque e defesa, o momento da malícia pura, da traição aos padrões.
Cabe ressaltar que isso não é coisa de intelectual. Nos manuscritos do mestre Pastinha e em seus depoimentos gravados, ele mostra plena consciência dessa simbologia da capoeira. Ele chegou mesmo a tentar elaborar uma filosofia para a vadiação. Já mestre Bimba utilizava histórias de fatos que teriam sido vividos por ele para ressaltar a importância da malícia e de sua percepção para o capoeirista. É só dar uma lida no Dr. Decânio ou escutar depoimentos de outros de seus alunos.
Essa ambigüidade é fundamental em todas as formas de cultura popular e representa uma visão de mundo daqueles que têm consciência de que a ordem, o preto no branco, lhes é desfavorável e que, para sobreviver é necessário explorar suas brechas, negando-a através de sua submissão. A capoeira não deixa de ser uma expressão simbólica dessa visão de mundo.
Moreno

sábado, novembro 11, 2006

Fragmentos irracionais sobre a capoeira

Senhores, confesso que sou um camarada que adora ficar no aconchego de sua casa e que só sai de lá tendo a certeza de que será bem acolhido no ambiente de destino. Felizmente, em certos momentos certos lugares da cidade parecem possuir uma aura capaz de capturar alguém e de fazê-lo se sentir parte de uma coletividade. Nesse blog já escrevi sobre um deles: a Torre de TV.
Um dia desses fui comprar um berimbau na barraca do Jô (ou Zeu?), antigo aluno do Vermelho Boxeur, mestre que depois da morte de Manoel dos Reis Machado ficou dando aulas em sua academia.
O Zeu corresponde ao estereótipo que fazemos do baiano: realizando todos os gestos relacionados a suas vendas num vagar envolvente, ele hinotiza o freguês. Serrar uma parte rachada da verga do berimbau, colocar um barbante numa cabaça, ensinar com carinho uma criança a tocar são bento grande de angola e contar histórias da época em que ganhou a medalha de ouro num capeonato de luta de capoeira, tudo isso acaba fazendo a gente se esquecer do ritmo diário da vida cotidiana e pensar como estamos afastados da lentidão original da existência (se é que ela um dia foi lenta).
Nesse dia, fiquei tocando o berimbau que eu comprei durante mais de uma hora sentado na mureta das fontes de água em frente à Torre. Nunca tinha ficado por tanto tempo naquele lugar, nunca tinha me sentido tão parte dele, tão absorvido pelo ambiente da feira e pelo toque do meu berimbau, nunca tinha me exposto dessa maneira à minha cidade. Poucas vezes, desde que a deixei por ano e meio a alguns anos, a amei tão intensamente.
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O relato daquele amigo meu sobre o grupo em que treinou, me lembrou de rituais de batizado que já presenciei. Me lembro da comemoração dos 30 anos de capoeira de um mestre daqui de Brasília. Veio gente de seu grupo do Amazonas, do Tocantins e até do México e o encerramento do evento foi marcado, não por acaso, para o dia dos pais. Após a roda final, os mestres e professores do grupo fizeram declarações de amor ao seu mestre e chamaram-no de pai. Foi emocionante. Até eu chorei, logo eu que nem era do grupo e não conhecia muita gente entre os presentes.
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Tenho muito contato com o mestre Pombo de Ouro, e ele vive me cobrando que eu tire fotos dos eventos de que participo. Agora é que percebo que a sua preocupação é a de que eu construa uma espécie de mitologia individual na capoeira, uma narrativa que dê sentido à minha experiência na vadiação. A preocupação do Mestre Pombo com a história individual do capoeirista, com a sua linhagem e sua ancestralidade faz parte de sua concepção de capoeira como sendo uma corrente infinita que nunca se rompe e que tem como elos cada capoeiristazinho por pior que ele jogue. Estaríamos participando de um fluxo em direção ao futuro. É um consolo (poderoso) contra a morte.
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Não é algo completamente irracional a nossa relação com a brincadeira? No caso dos domingos na Torre, buscamos o pertencimento a uma cidade; no caso de uma roda de capoeira, o estar junto a um grupo de pessoas que estão lá somente para interagir, ou, para alguns, a ligação a uma árvore genealógica que te liga aos velhos mestres, já mitificados, e, para outros, até à África. De repente é isso que faz com que permaneçamos muito tempo em um grupo de capoeira cuja forma de encarar o jogo não é bem a nossa, ou que nós admitamos assistir a um documentário meia boca sobre um dos pais fundadores da brincadeira. (In)Felizmente não tem nada a ver com a razão.
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quarta-feira, novembro 08, 2006

Valeu a espera?

Cedendo a pressões de alguns dos meus leitores que cobraram novas crônicas, escrevo esta postagem. Hoje, gostaria de falar sobre um "papoeira" que aconteceu no grupo Capoeira e Conhecimento e que teve como assunto a criação da Regional.
Como encarregado de puxar a discussão, comecei falando da existência de várias correntes da vadiação na Salvador do começo do século XX e do papel do mestre Bimba na codificação da capoeira como esporte, mantendo suas raízes africanas através do diálogo, de um lado, com sistemas de ginástica como o do carioca mestre Zuma e, de outro, com as correntes da vadiação baiana -- ou o que já estava começando a ser chamado, na década de 30, de capoeira angola.
Só que esses esquematismos preparados na minha cabeça acabaram sendo abalados por um camarada capoeirista que começou a treinar nos anos 70 em Curitiba com o mestre Sergipe. Ele explicou que seu mestre foi um dos pioneiros da capoeira naquela cidade e treinou com mestre Caiçara, conhecido angoleiro de Salvador. Pois bem, o estilo de seu mestre era voltado para a eficiência e até para a violência, em algumas oportunidades, e isso não se encaixava no que se esperava de alguém que vinha de uma linhagem angoleira. Daí veio a pergunta do camarada: não havia outras regionais além da do mestre Bimba?
Respondi que não, que o termo regional é estritamente identificado com o método de capoeira sistematizado pelo mestre Bimba nos anos 30. Mas me curvei à lógica daquela questão: se havia várias linhagens de capoeira, por que não podemos supor que pelo menos uma delas não era combativa também? A eficiência era qualidade apenas do mestre Bimba naquela época? Não haveria um espírito de eficiência e jogo alto também em outras linhagens da vadiação? A eficiência também não fazia parte da tradição tanto quanto a brincadeira?
Acabou que a conclusão do bate-papo foi a de que, apesar de ser fundamental na formação da capoeira como a conhecemos hoje, a bifurcação Angola - Regional pode não ter esgotado as possibilidades da vadiação. Tanto que, dentro daquela tradição existiram vertentes como as do mestre Waldemar da Liberdade ou as do mestre Noronha -- inimigo declarado de Pastinha -- e a do mestre Canjiquinha -- que propôs uma terceira via, uma espécie de meio-termo, para o brinquedo.
Dentro do estilo mais esportivo ligado à regional, poderíamos citar o mestre Artur Emídio, baiano de Itabuna nascido em 1930 que foi grande divulgador da capoeira em filmes, lutas e apresentações folclóricas e que migrou para o Rio de Janeiro, tendo sido mestre de caras como Leopoldina. O próprio mestre Bimba parece que deu um espaço maior à cultura no estilo regional quando, em 1946, recusou um desafio de combate feito a seus alunos em Salvador, tirando a capoeira dos ringues.
Por hoje é só, camaradas. Espero que a postagem de hoje tenha valido a espera.

Moreno