quinta-feira, março 17, 2011

A "orientalização" da capoeira

Como frisaram Vieira e Assunção, codificar uma visão de mundo própria da capoeira -- uma filosofia de vida baseada na vadiação -- não deixa de aproximar a capoeira das artes marciais orientais. Tais autores se referem às várias frases proferidas por mestre Pastinha sobre a capoeira, tais como: "Capoeira é tudo o que a boca come"; "capoeira é mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista."

Essa "orientalização" da capoeira -- que talvez tenha começado com mestre Pastinha -- é um fenômeno muito complexo que parece corresponder a um desenvolvimento interno à capoeira e à própria cultura afro-brasileira. Isso porque, se mestre Pastinha frisa os opostos que convivem na roda de capoeria -- a capoeira negativa, defensiva, que guarda em si a surpresa da capoeira positiva -- à maneira do Yin e do Yang chinês; por outro lado, quem come tudo o que a boca come é Exu, o orixá mensageiro, traiçoeiro e enganador que recebe as primeiras oferendas logo no início da cerimônia do candomblé.

Fiz essa digressão em torno de mestre Pastinha porque também no mestre Pombo percebo essa tendência para a "orientalização", claramente inspirada em mestres como Bimba e Pastinha, mas também em sua experiência de vida ligada àquela das classes populares brasileiras, bem como n o seu acesso à cultura pop internacional. Essa tendência à orientalização é perceptível na frase mais pronunciada pelo mestre Pombo: "O grande mestre é o tempo, a grande roda é a vida e quem não ginga na roda da vida dança." Porém, outro de seus ensinamentos, "o capoeirista deve ser como a água, adaptar-se a todas as situações", é claramente inspirado na frase de Bruce Lee sobre o praticante de kung fu.

A aura de misticismo desenvolvida por mestre Pombo combinou muito bem com o projeto do esporte educacional que César Barbieri e outros estavam tentando institucionalizar na Secretaria do Esporte nos anos pós-ditadura militar no quadro dos Jogos Escolares Brasileiros: o de uma capoeira mais reflexiva e expressiva na qual o aluno podia aprender na roda e nos treinos algo sobre a vida, expressar sentimentos relativos ao processo de ensino-aprendizagem e à sua própria existência e interagir com outros praticantes de capoeira para além da pura e simples competição.

A emergência desse projeto tinha muito que ver com a perda de poder do aparato militar nas instituições que regiam o país como um todo a partir de 1985. Era um momento no qual não só as idéias libertárias referentes ao esporte, mas também à sociedade brasileira em seu conjunto podiam ser formuladas e chegar a obter espaço no estado recém-democratizado.

Foi nesse contexto que um praticante da arte como Nestor Capoeira escreveu o seu "Galo já cantou", também um projeto que enxergava a capoeira como filosofia de vida ao lado da Psicanálise européia e do Zen asiático. Outros escreveram que o corpo do capoeirista guardava em si a memória da liberdade, sendo uma arma contra a ditadura e que ensinar capoeira era, naturalmente, ensinar democracia e criar cidadão livres e críticos a qualquer forma de autoritarismo.

Hoje em dia, o contexto é um pouco diferente. A contracultura foi cooptada e tornou-se modismo. As formas de gestão criadas pelas empresas japonesas já demonstraram que a reflexão do trabalhador sobre seu próprio trabalho, a expressão das próprias opiniões e a interação com os colegas para além da simples competição também podem se transformar em forma de controle da mão-de-obra, espalhando-se por qualquer ambiente de trabalho, inclusive no setor público.

Algo parecido se dá no campo da capoeira. Já li trabalhos de capoeiristas formados em psicologia que comparavam as etapas de graduação de seu grupo com as etapas do desenvolvimento psicológico humano. Eles chegam ao absurdo de defender que quanto mais avançada a graduação, mais madura e desenvolvida seria a personalidade do capoeirista. Ora, como o mestre possui a maior graduação dentro do grupo, ele é o ser humano mais maduro e desenvolvido que seus alunos conhecem! É isso que defendem esses pseudo-psicólogos em seus trabalhos de puro proselitismo, legitimando a autoridade dos mestres dentro de seus grupos a serviço de uma nova forma de organização dos mesmos em franquias multinacionais.

Esse é um exemplo de como um discurso "místico" e "libertador" pode servir a propósitos outros que eles não expressam de forma evidente.

Um abraço e até a próxima camaradas,