Lendo algumas resenhas sobre o
carnaval das escolas do grupo especial do RJ, percebo que os autores adotam o
ponto de vista dos jurados dos desfiles na avaliação de cada agremiação. Sendo
assim, não posso deixar de dar a minha opinião, formada a partir do ponto de
vista de um folião presente nas arquibancadas e com uma determinada concepção
do que deveria ser um desfile de escola de samba. Para a pessoa que está vendo
o desfile nessa condição, não conta muito se existe um grande espaço entre as
alas devido à lentidão de um carro alegórico cujo motor está defeituoso ou a
falha nas luzes de um carro alegórico. O espectador-folião percebe tais
detalhes de uma forma mais difusa, através de sua influência no conjunto do
desfile.
Segundo essa perspectiva, o
principal defeito da Mangueira não foi a quebra da cabeça do seu lindíssimo
carro alegórico, mas o fato de o samba não ter funcionado na avenida: a
festança brasileira não empolgou, a escola passou linda mas sem vibração e a
batida do surdo que caracteriza a escola -- se os deuses da folia me permitirem
essa comparação tão desfavorável contra a mitológica agremiação -- ficou mais
para cortejo fúnebre do que para carnavalesco. Foi uma grande pena, não sei se
isso tem a ver com a forma como o puxador escolheu para levar o samba ou com a
atuação do imponderável na transposição do hino do estúdio e do ensaio para a
avenida.
Mas nem tudo foi negativo no
desfile da Estação Primeira. Sua comissão de frente estava perfeita e nos
desfiles do primeiro dia, apenas a do Salgueiro foi capaz de se equiparar com
ela. As funções de apresentação da escola e do enredo de forma simples e
eficiente foram muito bem cumpridas. E tudo isso sem apelar para os efeitos
especiais. A importância disso não pode ser diminuída, dado que em muitas
escolas – como na Grande Rio e sua bala de canhão humana – os efeitos acabam
por ofuscar o papel daquela parte da agremiação. A comissão mangueirense
encenava o contato dos índios com os portugueses e a gestação das festas
populares brasileiras dentro de uma oca – que, no fim das contas, representava
o próprio Brasil. Quando a oca se abria, saíam de lá as festas de boi, o forró,
a parada gay e as festas barrocas da Bahia e de Ouro Preto.
Além daquela da Grande Rio, outra
comissão de frente que utilizou efeitos especiais foi a da Beija-Flor, porém de
uma forma mais refinada que sua coirmã de Duque de Caxias. Trazia uma visão de
conjunto sobre o enredo e apresentava a escola, porém não era tão simples e
eficiente quanto as da Mangueira e do Salgueiro. Talvez devido às
particularidades de seu tema. Selminha Sorriso e Claudinho, seu premiadíssimo
casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, vinham bailando num cenário que simulava
estúdio de tv; em torno deles voavam beija-flores. Atrás desse estúdio, havia
um tabuleiro de xadrez -- que talvez evocasse o jogo cerebral que é a tônica dos
bastidores da televisão e da própria competição pela audiência, que –
convenhamos -- é o negócio do homenageado da escola, o Boni. Foi uma comissão
de frente heterodoxa, criativa, porém menos telúrica que as da Mangueira e do
Salgueiro.
Aliás, o adjetivo “telúrica” serve bem para expressar qual deve ser, na
minha opinião, uma das qualidades principais de uma comissão de frente e de uma
escola de samba em geral: não confio em comissões que se abusam de carros
alegóricos e dos efeitos especiais. Perde-se de vista a relação da escola com o
“samba no pé” e a batucada, princípios que deram origem aos GRES. É por isso
que prefiro uma comissão que venha com os pés no chão e que use somente um tripé
de apoio para sua evolução.
Continuo a abordar o desfile da
Beija-Flor e devo confessar de antemão que não gostei do enredo da escola
nilopolitana. Deu-me a impressão de ser uma armação para ganhar carnaval, fazendo
uma homenagem indireta à Rede Globo, maior estação de tv do país, patrocinadora
e transmissora dos desfiles cariocas. A azul e branco da Baixada já havia se
utilizado da mesma tática ao escolher Roberto Carlos em 2011, só que, naquele
ano, o homenageado tinha mais substância cultural e tocava mais o público do
que um diretor de tv, que, se teve muita importância na história da televisão,
nunca foi populaer e sempre esteve muito associado aos bastidores da organização
da Rede Globo e às batalhas na disputa pelo Ibope, mundos não muito afetos ao
lirismo que dá o tom nos sambas que homenageiam personalidades culturais.
Acho que a própia Beija-Flor
percebeu isso e acabou escolhendo uma espécie de enredo duplo: ao cantar a história
dos meios de comunicação junto com a biografia do Boni, a escola buscou dar
estofo ao seu desfile. Assim, o que aconteceu na avenida foi o atropelamento do
tema biográfico -- e árido em termos carnavalescos -- pelo outro, histórico e muito
mais fértil. A escola veio bonita, luxuosa e monumental como se exige hoje das
agremiações do grupo especial, tinha uma boa levada do samba – graças ao seu
quase mitológico puxador -- e boa bateria, mas tudo isso foi prejudicado pelos
problemas do enredo escolhido.
É claro que não posso deixar de
escrever sobre o Salgueiro, a melhor escola do primeiro dia. O samba de escola
pegou nas arquibancadas, grande parte do público já sabia de cor a sua letra ou
acabou aprendendo ali na hora mesmo, contagiada pela empolgação da platéia e da
escola, pela beleza das fantasias e dos carros alegórico se pelo bom
desenvolvimento do enredo.
O enredo foi muito bem
apresentado: todos os seus momentos muito bem desenvolvidos e caracterizados
por cores, alegorias e subtemas muito bem matizados. A comissão de frente veio telúrica
e, ao mesmo tempo, aérea. Com os pés no chão apresentado os orixás citados no
samba e levitante, invocando o tema de uma nova relação dos seres humanos com a
natureza por meio da mulher que flutuava no tripé de apoio. A ligação das
religiões afro-brasileiras com as do Extremo Oriente não é uma novidade nem no
mundo do samba nem no mundo cultural brasileiro, mas relacionar os orixás e as
forças da natureza por eles representadas à preservação do meio ambiente é algo
mais criativo.
Dito isso, confesso que o desfile
salgueirense não chegou a me empolgar como aquele da Portela em 2011 – para mim,
a epítome do telúrico, já que suas fantasias eram fracas mas a vontade de
mostrar dignidade depois do incêndio do barracão fez com que a escola pegasse
fogo na Sapucaí. Talvez o Salgueiro não tenha me levado a um delírio extático por
seu samba ser “de pegada” e com pouco lirismo. Ou talvez pelo próprio peso de
suas lindas fantasias. Sei que o luxo tornou-se exigência para um desfile campeão
no grupo de acesso há pelo menos 40 anos,
mas em toda evolução perde-se alguma qualidade do estado de coisas anterior: as
“super-alegorias” das “super-escolas de samba S.A.” realmente tendem a ofuscar
o samba no pé. A maior organização e profissionalização dos GRES acaba por
exemplo, transformando os passistas em meros preenchedores do espaço deixado
pela bateria quando do seu recuo. Uma pena, pois o público acaba não apreciando
a arte desses bailarinos populares e os passistas não têm espaço para executar
seus passos barrocos e cativar a platéia com seus acenos e expressões
corporais.
Uma pequena menção às escolas
pequenas: por culpa da Gol, não cheguei a tempo de ver o “Batuk” do Império da
Tijuca, que tinha um samba com a pegada tão forte quanto a do Salgueiro. Sabia
que a desvantagem econômica contaria muito contra ela, mas gostaria de ver se o
samba no pé compensaria de alguma forma a falta de luxo das fantasias. A São
Clemente me impressionou. Seu samba tinha qualidade poética e melódica, era
leve, simpático e “pra cima”. E tudo isso ficou mais ressaltado ainda no
desfile. O enredo também foi muito bem desenvolvido.