segunda-feira, maio 14, 2007

Complementações

Acho que é necessário fazer uma complementação à postagem. Penso que dei uma guinada um pouco mística no final do texto, mas explico melhor a idéia. Existe uma outra utilidade no ensino das seqüências. Hoje em dia, vários grupos dizem ser de capoeira regional mas não as ensinam. Aproveitam-se do prestígio da criação do mestre Bimba. É por isso que eu defendo que o aprendizado das seqüências pode ser conscientizador para o aluno, ampliando seus horizontes dentro da vadiação e fanzendo-o descobrir quem é quem no nosso meio, tornando-o mais apto a seguir o seu próprio caminho.

Outro pequeno comentário: a capoeira regional não foi simplesmente mais uma vertente da vadiação baiana. Foi uma sistematização que modificou todo o campo da brincadeira. As outras tendências foram obrigadas posicionar contrária ou favoravelmente a ela depois do seu surgimento. Deve-se levar em conta o papel dos intelectuais na cristalização desse estilo.

Outra anotação: escrevi que a capoeira regional não teve força institucional para dominar os grupos do Centro-sul. É verdade. Mas isso não aconteceu por incompetência do mestre; mas sim porque mestre Bimba não organizou a regional em forma de franquia ou de um grupo com objetivos expansionistas, como estão organizados os grupos atuais. Este é um desenvolvimento posterior dentro do campo da vadiação.

É interessante saber o motivo de vários grupos reivindicarem ensinar a capoeira regional sem praticarem as seqüências, os balões ou o esquenta-banho. Nesse sentindo, ainda existe certa força simbólica da regional, como fonte de credibilidade de grupos contemporâneos. A face da regional associada à busca da eficiência nos tempos de mestre Bimba parece ter sido utilizada pelos grupos atuais como garantia de prestígio. Isso em detrimento do lado cultural e folclórico também associado a ela. Parece que a volatilidade dos estilos contemporâneos precisa ser ancorada nas concepções de capoeira mais bem instaladas, em particular na dualidade angola-regional.

Hoje em dia, os estilos contemporâneos não contam com uma relação íntima com os intelectuais, como acontecia até os anos 60, no contexto do paradigma culturalista dos estudos folclóricos. Assim, sua fonte de legitimidade continua naqueles estudos e nas concepções veiculadas por eles.

quinta-feira, maio 10, 2007

As seqüências da capoeira regional

A postagem de hoje surgiu de uma questão levantada por um camarada consideradíssimo lá do Tocantins. Sendo um entusiasta da capoeira regional, ele escreveu sobre a sua utilidade para os capoeiristas de hoje. Como a questão é interessante, também me atrevo a dar meu pitaco.
Aprendia-se e ensinava-se capoeira muito antes da existência do mestre Bimba. Ele próprio disse que aprendeu "de oitiva", ou seja, imitando o que os mais experientes faziam na roda. Porém, ele também disse que teve um mestre africano que o ensinou. Como seria o método de Bentinho? Sei que, no caso da capoeiragem carioca, existem crônicas de fins do século XIX que dão conta de que as maltas possuíam locais em que realizavam treinamentos. Só que a gente não sabe direito como eram tais treinos. Em Salvador, o mestre Canjiquinha disse que seu mestre começou a ensiná-lo a jogar ... jogando. Ele falava para o menino: "Abaixa aí que lá vai o pé!", e soltava a meia-lua. Outro mestre famoso disse que de tanto assistir acabou aprendendo.
Assim, os golpes das seqüências não foram criações do mestre, eram oriundos da vadiação baiana, do batuque, da ginástica nacional e até mesmo de lutas conhecidas por seus alunos -- Dr. Decânio atribui a Cisnando a criação do godeme, por exemplo. Eram movimentos já existentes que foram articulados pelo mestre Bimba.
Talvez as seqüências tenham servido para, entre outras coisas, fazer com que as camadas médias da sociedade baiana se familiarizassem com os gestos e movimentos da vadiação, desconhecidos para elas. Isso porque grande parte dos alunos do mestre Bimba foi educada em outra cultura corporal, que devia ser mais influenciada pelos gestos europeus. Foi essa sistematização do ensino e a condenação da malandragem associada à capoeira que tornou a brincadeira atrativa às classes médias baianas.
(A malandragem continuava sendo valorizada, mas dentro da roda, sob a forma da malícia.)
Outra coisa que nós esquecemos é que a capoeira regional de mestre Bimba – tanto quanto a capoeira angola de mestre Pastinha – era apenas uma vertente dentre as várias que existiam na Bahia. Vários mestres se sentiram atraídos por uma ou outra escola, mas as duas não esgotam a diversidade da vadiação baiana. E aqueles capoeiristas que não se filiaram a Bimba ou Pastinha, como foi o caso dos mestres Waldemar da Liberdade, Noronha, Canjiquinha e outros, não são menos legítimos. Tais mestres não utilizavam as seqüências da regional em seu ensino.
Some-se a isso o fato de que as sistematizações posteriores à do mestre Bimba abandonaram a prática das seqüências. Talvez porque nos anos 60 e começo dos anos 70, a regional já começasse a ser associada pelos novos mestres do Centro-Sul do país a algo antigo e ultrapassado. Foi uma época em que se tentou, novamente, eliminar ou suavizar as referências afro do jogo, tentando-se transformar a capoeira na "arte marcial brasileira", como escreve Alejandro Frigério.
A capoeira regional não teve força institucional e simbólica suficiente para dominar tais grupos e filiá-los. No caratê, que também foi sistematizado no começo do século XX, os katas são sempre os mesmos, muito provavelmente porque uma linhagem muito forte conseguiu servir de referência para vários mestres. No caso da capoeira regional, isso não aconteceu e as seqüências, os balões e o esquenta-banho foram abandonados ou reinterpretados segundo outros critérios.
O que é uma pena, já que seu ensino pode desenvolver aspectos fundamentais para o jogo de capoeira: complementaridade, noção de tempo de golpe e a própria execução de movimentos em si são importantíssimos.
Além disso, existe a aura mágica que envolve tais movimentos, dependendo de como são ensinados.
Faço parte daquele tipo de pessoas que tenta racionalizar todos os aspectos de sua experiência, mas sei que a razão não esgota a nossa existência. A humanidade continua criando mitos que dão um pouco de sentido à sua vida, e o mundo da capoeira está cheio deles. Treinando com o mestre Pombo, eu mesmo já experimentei várias vezes a sua força. O ensino das seqüências, articulado dentro de um método especial, pode desenvolver aspectos importantes do jogo de um capoeirista, além de fazê-lo entrar em contato direto com uma experiência corporal ancestral. É como se o espírito da regional se atualizasse em pleno século XXI. As aulas do mestre são envolvidas numa aura mágica em que parece que a capoeira está sendo inventada por nós à medida em que o treino avança, porém guiada por régua e compasso inventados há muito tempo...
Se nas suas aulas, um mestre, professor, ou algo que o valha, conseguir fazer com que os alunos experimentem algo parecido, estará mais do que justificado o ensinamento das seqüências do mestre Bimba para as novas gerações.
Um abraço camarada aos entusiastas da regional!