Mestre Pombo: narrador de uma memória corporal
A idéia para esse texto me surgiu após ter lido o pequeno ensaio de Walter Benjamin sobre o narrador. Ocorreu-me, então, que vale para o mestre Pombo o que Benjamin escreveu sobre Leskov: dizer que ele é um narrador de uma memória corporal não nos aproxima dele, só nos afasta. Isso porque, tanto no campo da narrativa da experiência humana escrita quanto no da inscrita no corpo, não conseguimos mais comunicar o que é essencial.
Benjamin fala que o pássaro onírico do tédio choca o ovo da experiência. A experiência contida nas narrativas precisa de um tempo lento para serem apreciadas pela audiência. Bem assim funcionavam as aulas dos mestres tradicionais: lembro que li na internet uma descrição de uma aula do mestre Bimba: enquanto uma dupla realizava as seqüências de ensino, os outros alunos ficavam olhando. Que diferença do ritmo frenético das aulas de hoje, em que os alunos mesmo não aceitamos ficar parados por muito tempo! Os aulões, as oficinas, os treinos em fileiras dariam lugar à atenção individualizada do mestre a cada um de acordo com seu nível técnico e seu temperamento.
Se, para Benjamin, o narrador obtém sua autoridade da morte e da eternidade, o mesmo vale para o mestre de capoeira tradicional: ele é concebido como mais um elo na corrente infinita de uma prática corporal. A informação dos jornais está para a narração assim como as oficinas de modismos corporais estão para a vadiação: naquelas, tudo está explicado e, por isso, a experiência está morta. Lembro que o mestre Pombo concebia a capoeira como algo vivo, sabia qual a dificuldade de cada movimento, que a "moleza" dos quadris e a noção de tempo de golpe não podem ser adquiridas instantaneamente, mas, por outro lado, sublinhava a necessidade da modificação da relação do aluno com seu corpo. A experiência, o sentimento ligado à realização de cada movimento era levado em conta.
Além disso, as brincadeiras com as duplas que treinavam os desequlibrantes não eram simplesmente para tornar as aulas agradáveis, como fazem hoje em dia os instrutores de academia. Elas transmitiam o ethos da capoeira: a malícia, a mandinga de Besouro, Bimba e a do próprio mestre. A forma de se fintar um golpe e soltar outro para enganar o camarada não era vista como o ensinamento de uma simples técnica: era encenada como experiência. O mestre até fazia a cara de espanto de quem tomava a finta e pressentia que seria golpeado. (O golpe era sempre pressentido, pois o pé devia ser segurado).
O "conhecimento da alma dos homens", que Nestor Capoeira diz advir com a prática da capoeira parece ter sido desenvolvido em seu último grau no mestre Pombo -- e aí não sei se foi pela vadiação ou pelos seus estudos e práticas esotéricas. Benjamin fala da figura dos Justos na obra de Leskov: pessoas que encarnavam a pura bondade, sabedoria e consolo do mundo. O mestre Pombo é um deles. Não foi por acaso que o emblema do nosso pequeno grupo era uma dupla de jogadores observada por um pombo dourado, algo próximo da simbologia cristã do espírito santo, mas que pode ter outro significado, como o da fé que cada aluno sentia na proteção de uma força da natureza no seu desenvolvimento pelos domínios da capoeira, seguindo uma estrada própria lidando com inseguranças, constrangimentos, deficiências técnicas e dificuldades que aparecem na "roda da vida".
Essa preocupação com a transmissão de uma experiência corporal era mostrada também no momento final de suas aulas, quando todos nos reuníamos num círculo e ele expunha as observações que ele tinha feito da roda que tinha acabado de terminar. Os alunos também tinham voz e eram incentivados a escreverem ou compartilharem suas experiências e vivências anteriores no mundo da capoeira, mesmo as daquele aluno que só conhecia a vadiação havia pouco tempo. Ora, o mestre sabia que qualquer aluno, mesmo o mais iniciante, tinha alguma experiência com a capoeira, nem que fosse só de ouvir o berimbau ou de ter assistido a uma roda. O pressuposto era o de que todos tinham uma idéia legítima de capoeira que devia ser levada em consideração e que não seria "atropelada", mas enriquecida à partir da aula dele.
Era assim que se dava o fechamento do encontro. Penso que o mestre fazia isso para nos deixar com a sensação de que tínhamos vivido uma experiência plena, com começo, meio e fim e com direito a uma reflexão sobre ela. Através desse método de ensino, uma memória corporal era perpetuada e atualizada a cada aula.