Capoeira: mito, esporte e educação
Camaradas, depois de uma ausência demorada volto a escrever nesta coluna. Espero que alguém tenha sentido falta dela. O assunto agora serão alguns mitos que rondam o mundo da capoeira.
Todos os que têm algum contato com o mundo da vadiação sabem que existe uma série de histórias sobre sua origem e natureza, algumas até incompatíveis entre si. Como exemplo básico cito as versões que defendem o surgimento da capoeira nas sociedades africanas e aquelas que defendem a origem da brincadeira nos quilombos e senzalas brasileiros.
Porém, meu interesse aqui não é desmascarar mitos e descobrir verdades absolutas sobre a "essência" da capoeira, se é que ela existe. Hoje, encaro esses mitos não de forma pejorativa, enxergando neles apenas mentiras, mas como narrativas que dão sentido à relação de milhões de praticantes com o nosso brinquedo e que fornecem aos mestres de capoeira uma justificativa para a adoção de determinados recursos de ensino. Assim, mesmo que sejam "verdades parciais" sobre a capoeira, interpreto os mitos como escolhas feitas por grupos e mestres que embasam a sua atuação no nosso meio.
Lembro que várias vezes, nos ensinando a jogar mais relaxados de forma a privilegiar uma movimentação mais solta, o mestre Pombo de Ouro nos falava "o negro não tinha armas, por isso não entrava em confronto direto com o branco". Ora, na verdade sabemos que houve várias oportunidades em que os escravos pegaram em armas e partiram para o enfrentamento direto contra seus senhores. As mais famosas delas foram o Quilombo dos Palmares na Paraíba/Pernambuco e a Revolta dos Malês, em Salvador.
Acontece que, através dessa saudável mentira, o mestre criava um mecanismo que nos inseria numa tradição, dava sentido a nossas experiências nos treinos e rodas e ditava a natureza da relação aluno-aluno e mestre-aluno. Não éramos pessoas repetindo movimentos porque o mestre mandava, mas sim descendentes dos escravos brasileiros que resistiam subrepticiamente à escravidão pela malícia e mandinga. E mais, com um espírito de camaradagem no qual o respeito ao colega era a regra de ouro já que, segundo o mestre, "quem sabe mais doa a que sabe menos". O mestre sendo um veículo de ligação com os antigos.
Assim, na nossa cabeça, atualizávamos no começo do século 21 movimentos e pensamentos de 4 séculos de escravidão; tudo isso articulado com um pensamento pedagógico que tinha que ver com uma forma esotérica de ver o mundo própria do mestre.
Outro grupo em que treinei fazia outro recorte, até com certa complexidade, das tradições da capoeira. Seu símbolo era inspirado naquele do Yin e Yang das culturas orientais, só que os pequenos círculos branco na metade preta e preto na metade branca foram substituídos por 2 berimbaus, um branco e outro preto, em cada uma das metades de cores opostas.
À primeira vista, parece uma mistureba sem sentido: elementos da filosofia oriental numa prática cultural afro-brasileira. Mas, diga-se de passagem, alguns escritos de mestre Pastinha podem ser comparados perfeitamente aos ensinamentos dos sábios asiáticos. Porém, como percebi convivendo com o grupo, a interpretação desse símbolo feita pelos seus idealizadores não tinha muito a ver com idéias do zen ou a do equilíbrio dos opostos universais, mas somente com a identificação que aquele desenho tinha com as artes marciais orientais.
De fato, aquele pessoal encarava a capoeira como arte marcial, na esteira das interpretações surgidas na década de 70 e não trabalhava com mitos de origem. Nunca ouvi o mestre ou os professores falarem sobre história da escravidão. O que eles faziam talvez estivesse inserido num outro recorte da tradição de capoeira: o das disputas entre grupos da segunda metade do século 20 e no reconhecimento da capoeira como esporte em 1972. Uma apropriação de elementos das artes marciais orientais, articulado com a visão da capoeira como esporte e inserido nas disputas de grupos eram os ingredientes do mecanismo enviesado que dava sentido à ação desse grupo e que emoldurava as relações que aconteciam dentro dele.
É claro que adoção de mitos não é obrigatória. Depende de muitos fatores, o principal deles é a formação cultural do mestre. Por exemplo, existem grupos que não se baseiam em mitos, mas interpretam a capoeira utilizando ferramentas dos estudos de pedagogia, psicologia e educação física. Seus mestres e professores possuem uma formação acadêmica. A princípio, não são piores nem melhores que os que trabalham com mitos. Como a escola se mostrou um campo passível de ser conquistado pela capoeira, discursos e apropriações desse tipo surgiram naturalmente no horizonte da brincadeira.
Assim, recortes mitológicos, esportivos e pedagógicos coexistem no meio da brincadeira. Isso me lembra de um ditado do mestre Pombo: "A capoeira é como a água, ela vai se moldando ao ambiente que encontra".
Um abraço a todos!
Todos os que têm algum contato com o mundo da vadiação sabem que existe uma série de histórias sobre sua origem e natureza, algumas até incompatíveis entre si. Como exemplo básico cito as versões que defendem o surgimento da capoeira nas sociedades africanas e aquelas que defendem a origem da brincadeira nos quilombos e senzalas brasileiros.
Porém, meu interesse aqui não é desmascarar mitos e descobrir verdades absolutas sobre a "essência" da capoeira, se é que ela existe. Hoje, encaro esses mitos não de forma pejorativa, enxergando neles apenas mentiras, mas como narrativas que dão sentido à relação de milhões de praticantes com o nosso brinquedo e que fornecem aos mestres de capoeira uma justificativa para a adoção de determinados recursos de ensino. Assim, mesmo que sejam "verdades parciais" sobre a capoeira, interpreto os mitos como escolhas feitas por grupos e mestres que embasam a sua atuação no nosso meio.
Lembro que várias vezes, nos ensinando a jogar mais relaxados de forma a privilegiar uma movimentação mais solta, o mestre Pombo de Ouro nos falava "o negro não tinha armas, por isso não entrava em confronto direto com o branco". Ora, na verdade sabemos que houve várias oportunidades em que os escravos pegaram em armas e partiram para o enfrentamento direto contra seus senhores. As mais famosas delas foram o Quilombo dos Palmares na Paraíba/Pernambuco e a Revolta dos Malês, em Salvador.
Acontece que, através dessa saudável mentira, o mestre criava um mecanismo que nos inseria numa tradição, dava sentido a nossas experiências nos treinos e rodas e ditava a natureza da relação aluno-aluno e mestre-aluno. Não éramos pessoas repetindo movimentos porque o mestre mandava, mas sim descendentes dos escravos brasileiros que resistiam subrepticiamente à escravidão pela malícia e mandinga. E mais, com um espírito de camaradagem no qual o respeito ao colega era a regra de ouro já que, segundo o mestre, "quem sabe mais doa a que sabe menos". O mestre sendo um veículo de ligação com os antigos.
Assim, na nossa cabeça, atualizávamos no começo do século 21 movimentos e pensamentos de 4 séculos de escravidão; tudo isso articulado com um pensamento pedagógico que tinha que ver com uma forma esotérica de ver o mundo própria do mestre.
Outro grupo em que treinei fazia outro recorte, até com certa complexidade, das tradições da capoeira. Seu símbolo era inspirado naquele do Yin e Yang das culturas orientais, só que os pequenos círculos branco na metade preta e preto na metade branca foram substituídos por 2 berimbaus, um branco e outro preto, em cada uma das metades de cores opostas.
À primeira vista, parece uma mistureba sem sentido: elementos da filosofia oriental numa prática cultural afro-brasileira. Mas, diga-se de passagem, alguns escritos de mestre Pastinha podem ser comparados perfeitamente aos ensinamentos dos sábios asiáticos. Porém, como percebi convivendo com o grupo, a interpretação desse símbolo feita pelos seus idealizadores não tinha muito a ver com idéias do zen ou a do equilíbrio dos opostos universais, mas somente com a identificação que aquele desenho tinha com as artes marciais orientais.
De fato, aquele pessoal encarava a capoeira como arte marcial, na esteira das interpretações surgidas na década de 70 e não trabalhava com mitos de origem. Nunca ouvi o mestre ou os professores falarem sobre história da escravidão. O que eles faziam talvez estivesse inserido num outro recorte da tradição de capoeira: o das disputas entre grupos da segunda metade do século 20 e no reconhecimento da capoeira como esporte em 1972. Uma apropriação de elementos das artes marciais orientais, articulado com a visão da capoeira como esporte e inserido nas disputas de grupos eram os ingredientes do mecanismo enviesado que dava sentido à ação desse grupo e que emoldurava as relações que aconteciam dentro dele.
É claro que adoção de mitos não é obrigatória. Depende de muitos fatores, o principal deles é a formação cultural do mestre. Por exemplo, existem grupos que não se baseiam em mitos, mas interpretam a capoeira utilizando ferramentas dos estudos de pedagogia, psicologia e educação física. Seus mestres e professores possuem uma formação acadêmica. A princípio, não são piores nem melhores que os que trabalham com mitos. Como a escola se mostrou um campo passível de ser conquistado pela capoeira, discursos e apropriações desse tipo surgiram naturalmente no horizonte da brincadeira.
Assim, recortes mitológicos, esportivos e pedagógicos coexistem no meio da brincadeira. Isso me lembra de um ditado do mestre Pombo: "A capoeira é como a água, ela vai se moldando ao ambiente que encontra".
Um abraço a todos!