quinta-feira, julho 26, 2012

Banguela e benguela

Camaradas, definitivamente separei esses últimos dias para dar meu pitaco sobre assuntos que envolvem os toques de berimbau da capoeira regional. Hoje, vou dar minha opinião sobre a interpretação que o Grupo Abadá fez do toque de benguela.

Antes de começar a falar especificamente do toque, vou escrever um pouco sobre o que creio ter sido o motivo de sua interpretação e divulgação por aquele grupo. Ora, é notório para quem viveu no meio da capoeira no fim dos anos 80 e início dos 90, que houve uma forte disputa por espaço entre os vários grupos de capeira no Brasil, e o critério para se julgar qual o melhor dentre eles passava pela "eficiência" dos seus respectivos estilos. Tal eficiência seria provada nas rodas pelo uso da violência contra o companheiro de jogo, visto como adversário e não como um camarada. Foi nesse contexto que o termo saroba adquiriu o significado de capoeirista ineficiente, cujos golpes não obedecem aos critérios de objetividade necessários para se obter a vitória na roda. (Para uma explicação mais aprofundada do significado desse termo, indico minha postagem "O que diabos é saroba?", publicada há alguns anos nesse blog).

Creio que, daqueles tempos para cá, a lógica de competição entre os grupos mudou sutilmente: com a reemergência da capoeira angola, com a crescente perda de prestígio dos estilos de capoeira identificados com a regional -- por causa da violência nas rodas -- e com a demarcação territorial estabilizada entre os grupos, eficiência e violência começam a perder terreno como balizador da competição entre as organizações de capoeira. A ludicidade volta a ser valorizada e aí um novo estilo de jogo precisa ser criado pelos mega-grupos em competição. O Cordão de Ouro surgiu com o miudinho e o Abadá com a ressurreição da benguela. Ambos, segundo os respectivos mestres-executivos de cada grupo, apoiados na tradição.

Assim, a estilização tanto do toque de benguela quanto de um tipo de jogo associado a ele vêm sendo promovidos pelo Abadá há alguns anos. Isso acabou correspondendo a anseios do "mercado capoeirístico": uma maior ludicidade dentro do campo da "regional-contemporânea" e uma resposta à competição contra os grupos de capoeira angola.

Vamos então tratar especificamente do toque banguela ou benguela -- essa última denominação sendo a preferida pelo grupo Abadá: em comparação com a interpretação feita por esse grupo, a versão original, de mestre Bimba, trabalha com mais recursos do berimbau: há mais sutilezas no afastamento ou na aproximação da cabaça do corpo do tocador e no uso da aproximação da pedra enquanto o arame ainda está vibrando, o que, deixemos bem claro, consiste num toque de sonoridade diferente do semi-preso. Além disso, mestre Bimba varia muito tanto os repiques quanto as terminações do toque: por exemplo, em vários momentos da gravação, o toque termina com uma presa e em outros, em duas presas.

Na verdade, quem escuta a banguela de mestre Bimba fica meio sem saber qual é o toque "puro", sem os repiques. Para mim, o toque não tem uma estilização clara. É isso que abre caminho para que, na sua interpretação, os seguidores de mestre Camisa selecionem a terminação em duas presas como o padrão. Isso não deixa de ser um empobrecimento com relação ao estilo criado por mestre Bimba, mas está baseado numa terminação que ocorre muito frequentemente na gravação que consta no disco do Curso de Capoeira Regional.

Porém, mais importante que a estilização da terminação do toque é o esquecimento das sutilezas características do estilo do berimbau de mestre Bimba em benefício da sua "higienização": o trabalho de afastamento-aproximação da cabaça e a utilização do chiado praticamente desaparecem. Aqui, é necessário dizer que a "sujeira" do toque de mestre Bimba, ou seja, a profusão de chiados -- favorecida pelo arame menos tensionado no berimbau grave -- e de efeitos com a cabaça, não são apenas um "charme" do mestre, mas parte essencial do estilo musical que ele criou.

Acontece que, para padronizar o toque tornando-o mais fácil e mais adaptado ao gosto de um público de capoeira não acostumado à sonoridade demasiado afro-baiana e rústica do berimbau, Camisa acabou "higienizando-o". A higienização do toque aparece também na própria mudança de seu nome -- de banguela para benguela -- que seria o efeito da correção do português "errado" falado por mestre Bimba, o que denota também o preconceito mobilizado por Camisa contra seu mestre. Sendo assim, minha hipótese é que, ao estilizar seu toque de benguela, Mestre Camisa evitou manter aquelas peculiaridades excessivamente regionais da Regional, contraproducentes para a expansão do grupo tanto no mercado globalizado como no mercado nacional -- cada vez mais urbanos -- não-acostumados à rusticidade da forma de Manoel dos Reis Machado manejar o arco musical.

Por outro lado, é necessário admitir que poucos grupos de capoeira contemporâneos conseguem manter a rusticidade do berimbau proposta por mestre Bimba. É por isso que vejo a aversão que muitos mestres de capoeira e alguns ex-alunos de mestre Bimba nutrem contra a estilização feita pelo Abadá não apenas como uma defesa da riqueza do toque criado pelo mestre, mas também como uma defesa de seu prestígio e de seu nicho de mercado contra o projeto expansionista daquele grupo, que continua sendo muito agressivo.

Pois o Abadá não é o único grupo que tem o projeto de transformar a capoeira num bem cultural transnacional, mas é o que o faz de forma mais específica, combinando o modelo de franquia, a concentração de poder material e simbólico na pessoa de um mestre, uma ideologia da eficiência e uma violência simbólica enorme contra outros estilos de capoeira, criando o que a estudiosa portuguesa Ana Jaqueira identificou como um projeto colonialista mundial.

É isso aí. Um forte abraço aos leitores.

Adriano "Moreno"


segunda-feira, julho 23, 2012

Mestre Bimba e mestre Cabecinha: uma pré-história da capoeira regional?

Camaradas, há algumas semanas venho escutando o programa de rádio Barracão da Cultura, transmitido pela Cultura FM 100,9 aqui de Brasília todos os sábados de 10h a meio dia, apresentado pelo Miojo, com o apoio do Cadete. Aliás, recomendo fortemente o programa aos capoeiristas da nossa cidade.
Pois bem, há dois sábados -- e justamente no dia da entrevista do mestre Pombo de Ouro -- o programa colocou no ar uma gravação de mestre Bimba datada de 1940 de cuja existência eu já tinha ouvido falar mas que nunca tinha escutado: nela, o mestre canta as cantigas da capoeira regional acompanhado por um berimbau que soa como se tocasse São Bento Grande de Angola (que a partir desse ponto do texto passa a ser substituído pela abreviatura SBA). Foi o camarada Cego lá de Palmas/TO que me indicou o link para o blog que possibilita baixar o disco inteiro. É este aqui: http://voltanomundocapoeira.blogspot.com.br/2009/07/mestre-cabecinha-e-mestre-bimba-1940.html. Nesse blog, ficamos sabendo que dois grandes pesquisadores estadunidenses estudiosos das culturas afro-americanas passaram por Salvador entre 1940 e 1941 e fizeram gravações com os mestres Bimba e Cabecinha.
Nessas gravações, mestre Bimba canta várias quadras e corridos com a entonação e o ritmo que já conhecemos do disco "Curso de Capoeira Regional" -- mas com uma diferença: o toque do berimbau não é o da regional, mas algo que soa muito próximo ao SBA. É para esse fato que eu gostaria de chamar atenção nessa postagem e a partir dele apresentar a seguinte hipótese: a criação do toque de São Bento Grande da Regional (a partir daqui SBR) é um processo que ainda não estaria completo no começo dos anos 1940. Além disso, arrisco afirmar que esse processo teria como ponto de partida a adaptação do SBA ao ritmo e ao estilo das quadras e corridos tal como eram cantados por mestre Bimba.
Camaradas, à primeira vista, o berimbau da gravação parece tocar um SBA aceleradíssimo. Porém, se vocês escutarem atentamente vão perceber que, em 1940, mestre Bimba tende a transformar as duas semi-presas do SBA (tch tch dim dom dom) em uma só (tch dim dom dom) -- "comendo" um pequeno intervalo de tempo do toque. E isso não acontece só porque cantasse mais rápido, mas principalmente por querer criar uma atmosfera mais belicosa nas rodas que mestrava. De fato, a supressão de um toque chiado ajusta o SBA à entonação e ao tempo da voz de Manoel dos Reis Machado, bem como ao pandeiro que a acompanha, criando uma "quebrada" no ritmo -- ausente no SBA -- resultando em um toque mais seco que evoca um jogo mais duro.
Ao mesmo tempo, essa variação do toque valoriza o chiado que o arame faz quando dele aproximamos a pedra, apresentando-se aqui uma característica do berimbau da capoeira regional: a valorização da semi-presa e do chiado emitido pela aproximação da pedra ao arame folgado do berimbau grave. Assim, o que se escuta nessa gravação é uma espécie de proto-SBR. A minha hipótese é a de que mestre Bimba desenvolve seu toque mais característico a partir dessa inadequação do SBA ao seu estilo de canto.
Ou seja, podemos afirmar que a capoeira regional ainda estava em processo de construção nos anos 40 do século XX, pois uma de suas principais características -- os toques de berimbau -- ainda não tinha sido formatada pelo seu criador. Na verdade, talvez seja possível dizer que o próprio toque SBA não tivesse ainda adqurido uma forma fechada, possibilitando a sua interpretação por mestre Bimba.
Outra observação importante pode ser feita a partir das gravações: o formato e a entonação das cantigas e mesmo os toques de berimbau de mestre Cabecinha são muito semelhantes aos de mestre Bimba. Segundo a apresentação feita no início de cada gravação, ficamos sabendo que o grupo de mestre Cabecinha chamava-se "Esperança Angola", o que o coloca na categoria "angoleiro"-- que, na época, abarcava todos os mestres que não tinham aderido à cademia de mestre Bimba. Mas não custa nada perguntar das relações entre os dois: teriam desenvolvido essas semelhanças por acaso? ou mestravam alguma roda juntos? foram alunos do mítico e lendário Bentinho?
Sobre esse assunto, ficamos apenas no campo da especulação, mas gosto de levantar essas dúvidas para combater a idéia de que mestre Bimba teria criado a capoeira regional a partir de uma idéia genial que lhe teria vindo pronta e acabada e de que, portanto, ela não teria uma história. Essa concepção da completude da Regional serve muito às disputas por espaço e prestígio no campo da capoeira, mas prejudica o entendimento do fenômeno humano que compreende a sua sistematização.
Um abraço a todos,

Adriano "Moreno"