Banguela e benguela
Camaradas, definitivamente separei esses últimos dias para dar meu pitaco sobre assuntos que envolvem os toques de berimbau da capoeira regional. Hoje, vou dar minha opinião sobre a interpretação que o Grupo Abadá fez do toque de benguela.
Antes de começar a falar especificamente do toque, vou escrever um pouco sobre o que creio ter sido o motivo de sua interpretação e divulgação por aquele grupo. Ora, é notório para quem viveu no meio da capoeira no fim dos anos 80 e início dos 90, que houve uma forte disputa por espaço entre os vários grupos de capeira no Brasil, e o critério para se julgar qual o melhor dentre eles passava pela "eficiência" dos seus respectivos estilos. Tal eficiência seria provada nas rodas pelo uso da violência contra o companheiro de jogo, visto como adversário e não como um camarada. Foi nesse contexto que o termo saroba adquiriu o significado de capoeirista ineficiente, cujos golpes não obedecem aos critérios de objetividade necessários para se obter a vitória na roda. (Para uma explicação mais aprofundada do significado desse termo, indico minha postagem "O que diabos é saroba?", publicada há alguns anos nesse blog).
Creio que, daqueles tempos para cá, a lógica de competição entre os grupos mudou sutilmente: com a reemergência da capoeira angola, com a crescente perda de prestígio dos estilos de capoeira identificados com a regional -- por causa da violência nas rodas -- e com a demarcação territorial estabilizada entre os grupos, eficiência e violência começam a perder terreno como balizador da competição entre as organizações de capoeira. A ludicidade volta a ser valorizada e aí um novo estilo de jogo precisa ser criado pelos mega-grupos em competição. O Cordão de Ouro surgiu com o miudinho e o Abadá com a ressurreição da benguela. Ambos, segundo os respectivos mestres-executivos de cada grupo, apoiados na tradição.
Assim, a estilização tanto do toque de benguela quanto de um tipo de jogo associado a ele vêm sendo promovidos pelo Abadá há alguns anos. Isso acabou correspondendo a anseios do "mercado capoeirístico": uma maior ludicidade dentro do campo da "regional-contemporânea" e uma resposta à competição contra os grupos de capoeira angola.
Vamos então tratar especificamente do toque banguela ou benguela -- essa última denominação sendo a preferida pelo grupo Abadá: em comparação com a interpretação feita por esse grupo, a versão original, de mestre Bimba, trabalha com mais recursos do berimbau: há mais sutilezas no afastamento ou na aproximação da cabaça do corpo do tocador e no uso da aproximação da pedra enquanto o arame ainda está vibrando, o que, deixemos bem claro, consiste num toque de sonoridade diferente do semi-preso. Além disso, mestre Bimba varia muito tanto os repiques quanto as terminações do toque: por exemplo, em vários momentos da gravação, o toque termina com uma presa e em outros, em duas presas.
Na verdade, quem escuta a banguela de mestre Bimba fica meio sem saber qual é o toque "puro", sem os repiques. Para mim, o toque não tem uma estilização clara. É isso que abre caminho para que, na sua interpretação, os seguidores de mestre Camisa selecionem a terminação em duas presas como o padrão. Isso não deixa de ser um empobrecimento com relação ao estilo criado por mestre Bimba, mas está baseado numa terminação que ocorre muito frequentemente na gravação que consta no disco do Curso de Capoeira Regional.
Porém, mais importante que a estilização da terminação do toque é o esquecimento das sutilezas características do estilo do berimbau de mestre Bimba em benefício da sua "higienização": o trabalho de afastamento-aproximação da cabaça e a utilização do chiado praticamente desaparecem. Aqui, é necessário dizer que a "sujeira" do toque de mestre Bimba, ou seja, a profusão de chiados -- favorecida pelo arame menos tensionado no berimbau grave -- e de efeitos com a cabaça, não são apenas um "charme" do mestre, mas parte essencial do estilo musical que ele criou.
Acontece que, para padronizar o toque tornando-o mais fácil e mais adaptado ao gosto de um público de capoeira não acostumado à sonoridade demasiado afro-baiana e rústica do berimbau, Camisa acabou "higienizando-o". A higienização do toque aparece também na própria mudança de seu nome -- de banguela para benguela -- que seria o efeito da correção do português "errado" falado por mestre Bimba, o que denota também o preconceito mobilizado por Camisa contra seu mestre. Sendo assim, minha hipótese é que, ao estilizar seu toque de benguela, Mestre Camisa evitou manter aquelas peculiaridades excessivamente regionais da Regional, contraproducentes para a expansão do grupo tanto no mercado globalizado como no mercado nacional -- cada vez mais urbanos -- não-acostumados à rusticidade da forma de Manoel dos Reis Machado manejar o arco musical.
Por outro lado, é necessário admitir que poucos grupos de capoeira contemporâneos conseguem manter a rusticidade do berimbau proposta por mestre Bimba. É por isso que vejo a aversão que muitos mestres de capoeira e alguns ex-alunos de mestre Bimba nutrem contra a estilização feita pelo Abadá não apenas como uma defesa da riqueza do toque criado pelo mestre, mas também como uma defesa de seu prestígio e de seu nicho de mercado contra o projeto expansionista daquele grupo, que continua sendo muito agressivo.
Pois o Abadá não é o único grupo que tem o projeto de transformar a capoeira num bem cultural transnacional, mas é o que o faz de forma mais específica, combinando o modelo de franquia, a concentração de poder material e simbólico na pessoa de um mestre, uma ideologia da eficiência e uma violência simbólica enorme contra outros estilos de capoeira, criando o que a estudiosa portuguesa Ana Jaqueira identificou como um projeto colonialista mundial.
É isso aí. Um forte abraço aos leitores.
Adriano "Moreno"
Antes de começar a falar especificamente do toque, vou escrever um pouco sobre o que creio ter sido o motivo de sua interpretação e divulgação por aquele grupo. Ora, é notório para quem viveu no meio da capoeira no fim dos anos 80 e início dos 90, que houve uma forte disputa por espaço entre os vários grupos de capeira no Brasil, e o critério para se julgar qual o melhor dentre eles passava pela "eficiência" dos seus respectivos estilos. Tal eficiência seria provada nas rodas pelo uso da violência contra o companheiro de jogo, visto como adversário e não como um camarada. Foi nesse contexto que o termo saroba adquiriu o significado de capoeirista ineficiente, cujos golpes não obedecem aos critérios de objetividade necessários para se obter a vitória na roda. (Para uma explicação mais aprofundada do significado desse termo, indico minha postagem "O que diabos é saroba?", publicada há alguns anos nesse blog).
Creio que, daqueles tempos para cá, a lógica de competição entre os grupos mudou sutilmente: com a reemergência da capoeira angola, com a crescente perda de prestígio dos estilos de capoeira identificados com a regional -- por causa da violência nas rodas -- e com a demarcação territorial estabilizada entre os grupos, eficiência e violência começam a perder terreno como balizador da competição entre as organizações de capoeira. A ludicidade volta a ser valorizada e aí um novo estilo de jogo precisa ser criado pelos mega-grupos em competição. O Cordão de Ouro surgiu com o miudinho e o Abadá com a ressurreição da benguela. Ambos, segundo os respectivos mestres-executivos de cada grupo, apoiados na tradição.
Assim, a estilização tanto do toque de benguela quanto de um tipo de jogo associado a ele vêm sendo promovidos pelo Abadá há alguns anos. Isso acabou correspondendo a anseios do "mercado capoeirístico": uma maior ludicidade dentro do campo da "regional-contemporânea" e uma resposta à competição contra os grupos de capoeira angola.
Vamos então tratar especificamente do toque banguela ou benguela -- essa última denominação sendo a preferida pelo grupo Abadá: em comparação com a interpretação feita por esse grupo, a versão original, de mestre Bimba, trabalha com mais recursos do berimbau: há mais sutilezas no afastamento ou na aproximação da cabaça do corpo do tocador e no uso da aproximação da pedra enquanto o arame ainda está vibrando, o que, deixemos bem claro, consiste num toque de sonoridade diferente do semi-preso. Além disso, mestre Bimba varia muito tanto os repiques quanto as terminações do toque: por exemplo, em vários momentos da gravação, o toque termina com uma presa e em outros, em duas presas.
Na verdade, quem escuta a banguela de mestre Bimba fica meio sem saber qual é o toque "puro", sem os repiques. Para mim, o toque não tem uma estilização clara. É isso que abre caminho para que, na sua interpretação, os seguidores de mestre Camisa selecionem a terminação em duas presas como o padrão. Isso não deixa de ser um empobrecimento com relação ao estilo criado por mestre Bimba, mas está baseado numa terminação que ocorre muito frequentemente na gravação que consta no disco do Curso de Capoeira Regional.
Porém, mais importante que a estilização da terminação do toque é o esquecimento das sutilezas características do estilo do berimbau de mestre Bimba em benefício da sua "higienização": o trabalho de afastamento-aproximação da cabaça e a utilização do chiado praticamente desaparecem. Aqui, é necessário dizer que a "sujeira" do toque de mestre Bimba, ou seja, a profusão de chiados -- favorecida pelo arame menos tensionado no berimbau grave -- e de efeitos com a cabaça, não são apenas um "charme" do mestre, mas parte essencial do estilo musical que ele criou.
Acontece que, para padronizar o toque tornando-o mais fácil e mais adaptado ao gosto de um público de capoeira não acostumado à sonoridade demasiado afro-baiana e rústica do berimbau, Camisa acabou "higienizando-o". A higienização do toque aparece também na própria mudança de seu nome -- de banguela para benguela -- que seria o efeito da correção do português "errado" falado por mestre Bimba, o que denota também o preconceito mobilizado por Camisa contra seu mestre. Sendo assim, minha hipótese é que, ao estilizar seu toque de benguela, Mestre Camisa evitou manter aquelas peculiaridades excessivamente regionais da Regional, contraproducentes para a expansão do grupo tanto no mercado globalizado como no mercado nacional -- cada vez mais urbanos -- não-acostumados à rusticidade da forma de Manoel dos Reis Machado manejar o arco musical.
Por outro lado, é necessário admitir que poucos grupos de capoeira contemporâneos conseguem manter a rusticidade do berimbau proposta por mestre Bimba. É por isso que vejo a aversão que muitos mestres de capoeira e alguns ex-alunos de mestre Bimba nutrem contra a estilização feita pelo Abadá não apenas como uma defesa da riqueza do toque criado pelo mestre, mas também como uma defesa de seu prestígio e de seu nicho de mercado contra o projeto expansionista daquele grupo, que continua sendo muito agressivo.
Pois o Abadá não é o único grupo que tem o projeto de transformar a capoeira num bem cultural transnacional, mas é o que o faz de forma mais específica, combinando o modelo de franquia, a concentração de poder material e simbólico na pessoa de um mestre, uma ideologia da eficiência e uma violência simbólica enorme contra outros estilos de capoeira, criando o que a estudiosa portuguesa Ana Jaqueira identificou como um projeto colonialista mundial.
É isso aí. Um forte abraço aos leitores.
Adriano "Moreno"