sexta-feira, março 07, 2014

Ser criança não é brinquedo não



Foi da quarta para a quinta-feira que sonhei que o mestre Pombo de Ouro estava me batizando e dando uma corda. Lembro que era vermelha, mas segundo ele, não era de mestre, mas simbolizava outra coisa. Não estranhei muito porque sei que no meio capoeirístico, abundam sistemas de graduação, embora eu não conheça nenhum cuja corda de mestre não seja daquela cor. 
Por outro lado, já que o mestre sempre me dizia que a verdadeira corda era na vida, esse sonho me remete a outros acontecimentos não relacionados à minha carreira – já quase encerrada --  na capoeira. Remete a um desejo infantil de ser um bom passista de escola de samba. O que o provocou foi o fato de eu ter assumido minha vontade de ser passista me vestindo como um deles. Foi o meu inconsciente me dizendo: olha, você conseguiu, realizou um desejo que não ousava admitir nem a si mesmo e nem aos outros”. Ter me vestido de malandro na confraternização de final de ano na casa de amigos, em dezembro passado, marcou o começo do afloramento desse desejo reprimido. Ter sambado nos ensaios da Aruc e da Asa Norte vestido de malandro apenas deu continuidade ao processo. Sua conclusão se deu durante o desfile da escola e teve três momentos.
Eu não teria sonhado o sonho não fosse uma seqüência de acontecimentos que se sucederam durante o desfile: o primeiro, ter escutado Ito Melodia, filho do grande puxador de samba Haroldo Melodia cantar “É hoje” em memória do pai e em homenagem à União da Ilha, escola que o consagrou, na abertura do desfile da Unidos da Vila Planalto e Lago Sul. Nunca sambei tão bem e tão emocionado quanto naquele momento, pois me lembrei de que, em 1982, eu e meus irmãos imitávamos Haroldo e queríamos ser puxadores de samba quando crescêssemos. O samba da Vila Planalto em homenagem ao grande cantor sendo puxado pelo seu filho disparou em mim a regressão e fez ressurgir o garoto de 9 anos. Era ele que dançava ali. Dançava para Haroldo Melodia da forma que ele gostaria de ter dançado há mais de 30 anos. O passo clássico, os rodopios e quejandos saíam fáceis dos seus pés. Dançava como se desfilasse na antiga Marquês de Sapucaí, anterior ao sambódromo, em 1982 cantando “É hoje”, com Haroldo. Chorei como chorei quando vi o rapaz bêbado dançar em Cachoeira: uma parte dele, ali, era eu. Mas isso é segredo.
O segundo, depois de minhas sapatilhas terem se esfarelado e da cartolona ter decolado da minha cabeça, a pequena carteira de plástico onde levava meus documentos caiu e foi parar na mão do diretor de minha ala. Sincronicidade: a perda da identidade, o estado liminar já estava instalado ali. Já não sabia quem -- ou quando --  era: menino ou adulto?
No final do desfile, o terceiro acontecimento: o menino cansado vê surgir em sua frente mestre Dionísio, professor de dança do samba no Rio de Janeiro, bailarino popular respeitadíssimo e referência para vários mestres-salas do país. Não pensei duas vezes -- aliás, nem mesmo uma -- fiz a reverência e o abracei. Ele retribuiu o abraço e pareceu alegre por ter sido saudado e reconhecido por aquele folião anônimo de uma obscura escola de samba do Distrito Federal.
O sonho foi uma tentativa de lidar com tudo isso, com tudo o que despertado desde dezembro até o último dia de carnaval. Nele, o mestre que eu mais respeito e com quem mais e melhor convivi, me concedia o seu reconhecimento, reconhecia a validade do sonho daquele menino. Não foi rito de passagem coisa nenhuma, pois saí de lá ainda criança, lisonjeado pelo elogio do professor à dedicação com que estudava a matéria que ele lecionava. Nada ali se construiu, mas foi uma criança de nove anos e que sambava descalça que saiu alegre ali da dispersão. Alguns momentos depois, ela se transformaria num adulto meio desorientado, sem documentos e sem dinheiro para voltar pra casa. Era o começo da quarta-feira.

quarta-feira, março 05, 2014

Sobre o carnaval na Sapucaí em 2014



Lendo algumas resenhas sobre o carnaval das escolas do grupo especial do RJ, percebo que os autores adotam o ponto de vista dos jurados dos desfiles na avaliação de cada agremiação. Sendo assim, não posso deixar de dar a minha opinião, formada a partir do ponto de vista de um folião presente nas arquibancadas e com uma determinada concepção do que deveria ser um desfile de escola de samba. Para a pessoa que está vendo o desfile nessa condição, não conta muito se existe um grande espaço entre as alas devido à lentidão de um carro alegórico cujo motor está defeituoso ou a falha nas luzes de um carro alegórico. O espectador-folião percebe tais detalhes de uma forma mais difusa, através de sua influência no conjunto do desfile.
Segundo essa perspectiva, o principal defeito da Mangueira não foi a quebra da cabeça do seu lindíssimo carro alegórico, mas o fato de o samba não ter funcionado na avenida: a festança brasileira não empolgou, a escola passou linda mas sem vibração e a batida do surdo que caracteriza a escola -- se os deuses da folia me permitirem essa comparação tão desfavorável contra a mitológica agremiação -- ficou mais para cortejo fúnebre do que para carnavalesco. Foi uma grande pena, não sei se isso tem a ver com a forma como o puxador escolheu para levar o samba ou com a atuação do imponderável na transposição do hino do estúdio e do ensaio para a avenida.
Mas nem tudo foi negativo no desfile da Estação Primeira. Sua comissão de frente estava perfeita e nos desfiles do primeiro dia, apenas a do Salgueiro foi capaz de se equiparar com ela. As funções de apresentação da escola e do enredo de forma simples e eficiente foram muito bem cumpridas. E tudo isso sem apelar para os efeitos especiais. A importância disso não pode ser diminuída, dado que em muitas escolas – como na Grande Rio e sua bala de canhão humana – os efeitos acabam por ofuscar o papel daquela parte da agremiação. A comissão mangueirense encenava o contato dos índios com os portugueses e a gestação das festas populares brasileiras dentro de uma oca – que, no fim das contas, representava o próprio Brasil. Quando a oca se abria, saíam de lá as festas de boi, o forró, a parada gay e as festas barrocas da Bahia e de Ouro Preto.
Além daquela da Grande Rio, outra comissão de frente que utilizou efeitos especiais foi a da Beija-Flor, porém de uma forma mais refinada que sua coirmã de Duque de Caxias. Trazia uma visão de conjunto sobre o enredo e apresentava a escola, porém não era tão simples e eficiente quanto as da Mangueira e do Salgueiro. Talvez devido às particularidades de seu tema. Selminha Sorriso e Claudinho, seu premiadíssimo casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, vinham bailando num cenário que simulava estúdio de tv; em torno deles voavam beija-flores. Atrás desse estúdio, havia um tabuleiro de xadrez -- que talvez evocasse o jogo cerebral que é a tônica dos bastidores da televisão e da própria competição pela audiência, que – convenhamos -- é o negócio do homenageado da escola, o Boni. Foi uma comissão de frente heterodoxa, criativa, porém menos telúrica que as da Mangueira e do Salgueiro.
Aliás, o adjetivo “telúrica”  serve bem para expressar qual deve ser, na minha opinião, uma das qualidades principais de uma comissão de frente e de uma escola de samba em geral: não confio em comissões que se abusam de carros alegóricos e dos efeitos especiais. Perde-se de vista a relação da escola com o “samba no pé” e a batucada, princípios que deram origem aos GRES. É por isso que prefiro uma comissão que venha com os pés no chão e que use somente um tripé de apoio para sua evolução.
Continuo a abordar o desfile da Beija-Flor e devo confessar de antemão que não gostei do enredo da escola nilopolitana. Deu-me a impressão de ser uma armação para ganhar carnaval, fazendo uma homenagem indireta à Rede Globo, maior estação de tv do país, patrocinadora e transmissora dos desfiles cariocas. A azul e branco da Baixada já havia se utilizado da mesma tática ao escolher Roberto Carlos em 2011, só que, naquele ano, o homenageado tinha mais substância cultural e tocava mais o público do que um diretor de tv, que, se teve muita importância na história da televisão, nunca foi populaer e sempre esteve muito associado aos bastidores da organização da Rede Globo e às batalhas na disputa pelo Ibope, mundos não muito afetos ao lirismo que dá o tom nos sambas que homenageiam personalidades culturais.
Acho que a própia Beija-Flor percebeu isso e acabou escolhendo uma espécie de enredo duplo: ao cantar a história dos meios de comunicação junto com a biografia do Boni, a escola buscou dar estofo ao seu desfile. Assim, o que aconteceu na avenida foi o atropelamento do tema biográfico -- e árido em termos carnavalescos -- pelo outro, histórico e muito mais fértil. A escola veio bonita, luxuosa e monumental como se exige hoje das agremiações do grupo especial, tinha uma boa levada do samba – graças ao seu quase mitológico puxador -- e boa bateria, mas tudo isso foi prejudicado pelos problemas do enredo escolhido.
É claro que não posso deixar de escrever sobre o Salgueiro, a melhor escola do primeiro dia. O samba de escola pegou nas arquibancadas, grande parte do público já sabia de cor a sua letra ou acabou aprendendo ali na hora mesmo, contagiada pela empolgação da platéia e da escola, pela beleza das fantasias e dos carros alegórico se pelo bom desenvolvimento do enredo.
O enredo foi muito bem apresentado: todos os seus momentos muito bem desenvolvidos e caracterizados por cores, alegorias e subtemas muito bem matizados. A comissão de frente veio telúrica e, ao mesmo tempo, aérea. Com os pés no chão apresentado os orixás citados no samba e levitante, invocando o tema de uma nova relação dos seres humanos com a natureza por meio da mulher que flutuava no tripé de apoio. A ligação das religiões afro-brasileiras com as do Extremo Oriente não é uma novidade nem no mundo do samba nem no mundo cultural brasileiro, mas relacionar os orixás e as forças da natureza por eles representadas à preservação do meio ambiente é algo mais criativo.
Dito isso, confesso que o desfile salgueirense não chegou a me empolgar como aquele da Portela em 2011 – para mim, a epítome do telúrico, já que suas fantasias eram fracas mas a vontade de mostrar dignidade depois do incêndio do barracão fez com que a escola pegasse fogo na Sapucaí. Talvez o Salgueiro não tenha me levado a um delírio extático por seu samba ser “de pegada” e com pouco lirismo. Ou talvez pelo próprio peso de suas lindas fantasias. Sei que o luxo tornou-se exigência para um desfile campeão no grupo de acesso há pelo menos  40 anos, mas em toda evolução perde-se alguma qualidade do estado de coisas anterior: as “super-alegorias” das “super-escolas de samba S.A.” realmente tendem a ofuscar o samba no pé. A maior organização e profissionalização dos GRES acaba por exemplo, transformando os passistas em meros preenchedores do espaço deixado pela bateria quando do seu recuo. Uma pena, pois o público acaba não apreciando a arte desses bailarinos populares e os passistas não têm espaço para executar seus passos barrocos e cativar a platéia com seus acenos e expressões corporais.
Uma pequena menção às escolas pequenas: por culpa da Gol, não cheguei a tempo de ver o “Batuk” do Império da Tijuca, que tinha um samba com a pegada tão forte quanto a do Salgueiro. Sabia que a desvantagem econômica contaria muito contra ela, mas gostaria de ver se o samba no pé compensaria de alguma forma a falta de luxo das fantasias. A São Clemente me impressionou. Seu samba tinha qualidade poética e melódica, era leve, simpático e “pra cima”. E tudo isso ficou mais ressaltado ainda no desfile. O enredo também foi muito bem desenvolvido.