sexta-feira, março 16, 2007

Perdas e ganhos

Dando uma olhada nas minhas crônicas anteriores, percebo que, na maioria das vezes, passo uma visão muito negativa da esportivização da capoeira. Em alguns momentos, deixo transparecer uma antipatia um pouco mesquinha para com alguns desenvolvimentos recentes da vadiação. Talvez por não me considerar um atleta, essa visão romântica da capoeira como pura ludicidade e espontaneidade seja muito forte em mim.
Acontece que brincadeira e ludicidade, esporte e competição não são totalmente excludentes. Isso acontece inclusive no futebol, um esporte altamente profissionalizado em que os maiores craques parecem continuar a se divertir. Ronaldinho Gaúcho ao olhar para um lado e passar a bola para o outro, ou ao escolher sair pelo contrapé do marcador depois de pedalar na sua frente parece estar brincando. E Zidane deve ter adorado dar um balãozinho em Ronaldo na Copa...
Além disso, como me fez notar um camarada, a Copa da Uefa não vai extinguir a pelada de fim de semana. Muito pelo contrário, os peladeiros acabam por tentar realizar os dribles dos grandes jogadores, apropriando-se deles e acrescentando mais um tempero à sua brincadeira.
Coisa parecida acontece com a vadiação. Já mencionei que capoeiristas já estão utilizando vídeos para se atualizarem: novos floreios e seqüências de movimentos estão sendo popularizadas através de imagens de capoeiristas de todas as partes do mundo. Elas podem ser vistas no "youtube" ou nas fitas de vídeo e DVDs anunciados nas revistas e sítios eletrônicos especializados.
Por exemplo, num churrasco aqui em Brasília, presenciei uma conversa entre dois capoeiristas locais e um mestre paulistano em que estava sendo discutido o "antídoto" para um determinado movimento de benguela que os brasilienses tinham visto o outro fazer num DVD. Foi muito interessante escutar essa conversa e assistir à demonstração do movimento, percebi que não está totalmente fechada a possiblidade de que cada grupo interprete e encaixe as inovações em seu estilo; de que cada capoeirista, individualmente, incorpore desenvolva seu jogo de acordo com suas qualidades e limitações.
Camaradas como Nestor Capoeira, apesar de reconhecerem algumas perdas na vadiação, consideram que hoje vivemos a “era de ouro” do nosso brinquedo. O desenvolvimento de metodologias de ensino adotadas por mestres e professores em todas as partes do mundo tem contribuído para a formação de um maior número de capoeiristas de alto nível.
É claro que com a modernização, perde-se algo da tradição. Mas -- talvez devido à ambigüidade mesma da capoeira --, competição e cooperação, agônico e lúdico, dominação e liberdade sempre conviverão numa roda. Sempre haverá mestres capazes de trabalharem diferentes tipos de metodologias, bem como alunos criativos o suficiente para reinterpretarem e encaixarem no próprio jogo – se lhes convier – os movimentos da moda.

quinta-feira, março 15, 2007

O que diabos é “saroba" (versão para o rondoniaesporte.com.br)

Camaradas, começo a crônica de hoje com uma correção. É que num escrito anterior, intitulado “Pastinha, Gilberto e Hendrix”, dei a entender que mestre João Pequeno já teria morrido. Ora, como todos sabemos, ele contiua jogando capoeira do alto de seus quase 90 anos de idade.
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Feita a correção, gostaria agora de tecer comentários sobre um termo que é muito utilizado no meio capoeirístico. Trata-se do adjetivo "saroba", utilizado para depreciar o jogo de um camarada. Dando uma olhada nos significados que tal palavra possui podemos colocar em evidência certos valores introjetados por nós no meio da brincadeira.
O Dicionário de Capoeira, da autoria de Mano Lima, dá o seguinte significado para o termo: “O mesmo que sarandage. O capoeira que sabe apenas alguns rudimentos e joga feio, com movimentação desfigurada.”. A fonte seria o clássico livro de Waldeloir Rego sobre a capoeira angola.
Em outra crônica, já escrevi que um capoeirista paraense me disse que jogava num grupo sarobeiro até a sua mudança para o grupo de um professor vindo do Rio de Janeiro que tinha dado porrada nos seus companheiros, mostrando um novo jeito de gingar e jogar. No meu blog capoeira, li um comentário de um cidadão que diz que grupos que não jogam benguela já estão sendo chamados de sarobas.
Nos anos 90, aprendi que tal palavra podia ser entendida como o antônimo de "sarado", termo emprestado do ambiente das academias de musculação e que designa a pessoa que tem um corpo trabalhado, musculoso. Seria o modelo do que todos os malhadores da academia -- ou pelo menos grande parte deles -- queria ser.
Assim, se sarado designava, na academia de musculação, uma pessoa cujo corpo malhado estava dentro de um padrão estético desejado por todos; na capoeira, saroba seria aquele cujo jogo não corresponde a um determinado padrão estético e esportivo estabelecido por uma fonte de prestígio inquestionável.
Acontece que, de 1968 – ano em que Rego escreveu seu livro – para cá, o meio da capoeira se modificou muito. A nossa brincadeira passou a ser ensinada por todas as regiões do país dentro de escolas ou de academias de ginástica. E isso pode ter modificado o significado tradicional daquele termo.
Com a penetração da capoeira em novos ambientes de ensino e uma segunda onda de esportivização acontecida nos anos 60 -- que levou a uma modificação da estética da vadiação --, o ensino em academias passou a ser mais valorizado.
Assim, aprender capoeira na rua ou na roda, do jeito tradicional, passou a ser algo desprestigioso e o significado de saroba passou a englobar também um jogo visto como antiquado se comparado ao novo padrão estético e esportivo da capoeira criado nas academias de São Paulo e da zona sul do Rio de Janeiro.
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O termo saroba também é utilizado como marcador de identidade grupal, denotando uma visão muito fechada de capoeira, que não aceita a diversidade existente dentro da vadiação.
Já treinei em alguns grupos que tinham uma visão de capoeira mais voltada para a luta e para o esporte. Me lembro de que o mestre, nos batizados, nos chamava de "atletas" e, em algumas conversas depois dos treinos, nos estimulava a virarmos lutadores de capoeira. Lembro que colegas meus me falaram para não jogar sorrindo e fechar mais a cara para mostrar que eu era mau.
Nesse ambiente, saroba era muito usado, e deixava passar um preconceito muito grande. Geralmente era um adjetivo usado contra capoeiristas de outro grupo ou contra um outro grupo como um todo. Era um artifício para criar uma identidade: éramos um grupo de sarados contra todos os outros, sarobas.
E saroba era utilizado para designar aquele capoeirista que não tinha uma certa estética de jogo -- a ginga plástica, os golpes estendidos, os floreios emprestados da ginástica olímpica, a velocidade meio neurótica. Era uma coisa associada a ser antiquado, a estar fora de moda, a um jogo bruto, no sentido de não-cultivado dentro de um grupo de capoeira ou de uma academia decente.
É isso aí! Até a próxima, camaradas!