Pílulas sobre a tradição
Camaradas, a última postagem provocou alguns comentários interessantes. Alguns gostaram por ela ter abordado a "descaracterização" da capoeira regional. Para esses, o jogo de iúna e o toque de mesmo nome vêm de uma tradição que deveria ser respeitada e mantida imutável.
Outros comentários tiveram um certo tom de gozação e diziam mais ou menos o seguinte: "De que me interessa saber uma coisa que não tem nada a ver com a capoeira praticada no ambiente e na época em que vivo?" Ou, "não tenho compromisso com a tradição, ela é um fardo, uma camisa de força que impede a liberdade de interpretação da brincadeira".
De fato, essa questão é importante: por que a iúna não pode ser reinterpretada? Seu criador não foi ele mesmo um grande intérprete das tradições afro-brasileiras?
Não sou um defensor da imutabilidade, sei que as modificações da tradição da regional têm uma razão de ser. Por exemplo, a relação mestre-discípulo pautada pela "pedagogia do africano" tem mais a ver com sociedades não-industriais. Não tem muito como se perpetuar na atmosfera de ensino de capoeira em academias onde o mestre não é mais o detentor de um saber tradicional, mas alguém que tem a obrigação de nos ensinar porque estamos pagando e que tem de sair correndo para dar outra aula por que, afinal de contas, o cara precisa ganhar a vida.
Entendo que, nessa realidade, se as rodas funcionassem no esquema de o mestre indicar as duplas e as compras, não iria dar tempo de todos os alunos jogarem. E, como hoje em dia não estamos mais acostumados a esperar por nada, o que ia acontecer era a insatisfação generalizada dos alunos.
Até aí tudo bem. Não podemos voltar no tempo. Mas, hoje em dia, as rodas mais disputadas tendem para a desorganização justamente por isso: os camaradas compram o jogo a cada segundo, não deixando a brincadeira da dupla se desenvolver, não se esperando mais do berimbau aquele papel de organizador da roda que, segundo os mais antigos e conforme está escrito nos livros, ele teve.
Porém, para corrigir esse aspecto -- e outros -- das rodas atuais não é preciso viajar ao passado. A maioria dos grupos de capoeira angola que existem hoje não permite ou restringe ao máximo a compra de jogo. É já assisti a rodas aqui em Brasília onde aquela tradicional fila de camaradas agachados para jogar etornou-se enorme, pois a compra não era permitida. Isso parece ter a ver também com uma questão de organização interna de cada grupo.
***
Já ouvi alguns mestres mais antigos ironizarem muito a adoção das "trancinhas", ou dread locks por parte dos capoeiristas. Alguns dizem que, se o "bicho pegar" numa roda, fica fácil puxar o cabelo do camarada e lhe dar uma joelhada, por exemplo. Pode até ser, mas não dá para ignorar o simbolismo das tranças na capoeira e na cultura pop hoje em dia: a valorização da herança africana.
O uso de tranças por parte de capoeiristas negros -- e até brancos -- é comum hoje em dia, a ponto de uma postura como aquela ser considerada conservadora ao extremo. Até o mestre Nenel, filho do mestre Bimba, usa "dreads".
Mas o mais interessante nisso é que, no contexto de globalização da capoeira, até o significado desse tipo de penteado pode ser interpretado pelo dono do cabelo. Sei de um camarada polonês que veio dar aulas da brincadeira no Brasil e que fez dread locks. Talvez isso mostre a profundidade do seu comprometimento com o jogo, a ponto de deixar o seu país de origem e escolher viver em outro, a capoeira tendo cumprido um papel importante nessa migração.
Nesse caso, as tranças seriam uma manifestação muito interessante de identificação desse camarada com o brinquedo e, através dele, com a própria cultura brasileira.
Outros comentários tiveram um certo tom de gozação e diziam mais ou menos o seguinte: "De que me interessa saber uma coisa que não tem nada a ver com a capoeira praticada no ambiente e na época em que vivo?" Ou, "não tenho compromisso com a tradição, ela é um fardo, uma camisa de força que impede a liberdade de interpretação da brincadeira".
De fato, essa questão é importante: por que a iúna não pode ser reinterpretada? Seu criador não foi ele mesmo um grande intérprete das tradições afro-brasileiras?
Não sou um defensor da imutabilidade, sei que as modificações da tradição da regional têm uma razão de ser. Por exemplo, a relação mestre-discípulo pautada pela "pedagogia do africano" tem mais a ver com sociedades não-industriais. Não tem muito como se perpetuar na atmosfera de ensino de capoeira em academias onde o mestre não é mais o detentor de um saber tradicional, mas alguém que tem a obrigação de nos ensinar porque estamos pagando e que tem de sair correndo para dar outra aula por que, afinal de contas, o cara precisa ganhar a vida.
Entendo que, nessa realidade, se as rodas funcionassem no esquema de o mestre indicar as duplas e as compras, não iria dar tempo de todos os alunos jogarem. E, como hoje em dia não estamos mais acostumados a esperar por nada, o que ia acontecer era a insatisfação generalizada dos alunos.
Até aí tudo bem. Não podemos voltar no tempo. Mas, hoje em dia, as rodas mais disputadas tendem para a desorganização justamente por isso: os camaradas compram o jogo a cada segundo, não deixando a brincadeira da dupla se desenvolver, não se esperando mais do berimbau aquele papel de organizador da roda que, segundo os mais antigos e conforme está escrito nos livros, ele teve.
Porém, para corrigir esse aspecto -- e outros -- das rodas atuais não é preciso viajar ao passado. A maioria dos grupos de capoeira angola que existem hoje não permite ou restringe ao máximo a compra de jogo. É já assisti a rodas aqui em Brasília onde aquela tradicional fila de camaradas agachados para jogar etornou-se enorme, pois a compra não era permitida. Isso parece ter a ver também com uma questão de organização interna de cada grupo.
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Já ouvi alguns mestres mais antigos ironizarem muito a adoção das "trancinhas", ou dread locks por parte dos capoeiristas. Alguns dizem que, se o "bicho pegar" numa roda, fica fácil puxar o cabelo do camarada e lhe dar uma joelhada, por exemplo. Pode até ser, mas não dá para ignorar o simbolismo das tranças na capoeira e na cultura pop hoje em dia: a valorização da herança africana.
O uso de tranças por parte de capoeiristas negros -- e até brancos -- é comum hoje em dia, a ponto de uma postura como aquela ser considerada conservadora ao extremo. Até o mestre Nenel, filho do mestre Bimba, usa "dreads".
Mas o mais interessante nisso é que, no contexto de globalização da capoeira, até o significado desse tipo de penteado pode ser interpretado pelo dono do cabelo. Sei de um camarada polonês que veio dar aulas da brincadeira no Brasil e que fez dread locks. Talvez isso mostre a profundidade do seu comprometimento com o jogo, a ponto de deixar o seu país de origem e escolher viver em outro, a capoeira tendo cumprido um papel importante nessa migração.
Nesse caso, as tranças seriam uma manifestação muito interessante de identificação desse camarada com o brinquedo e, através dele, com a própria cultura brasileira.