A capoeira ilumindada, de novo
Assisti novamente ao filme "Mestre Bimba: a capoeira iluminada" e ele me pareceu melhor agora do que da primeira vez que o vi. Acho que, naquela oportunidade, estava muito preocupado com as "terríveis modificações" que alguns grupos teriam feito na regional ou com a utilização do filme como propaganda de determinada agremiação. Esses filtros me fizeram avaliar o filme de uma forma que ele não merecia. Afinal de contas, quem sou eu para determinar qual a interpretação correta das tradições da vadiação?
Percebi que algumas das idéias principais de Muniz Sodré -- que aparece no fime com o apelido de Americano -- estavam lá: a sugestão da capoeira como sendo um saber corporal afro-brasileiro foi mostrada através das imagens dos estivadores negros no porto de Salvador carregando sacos na cabeça; a relação de mestre Bimba com os estivadores apareceu na história que dr. Decânio contou sobre Bimba ter vivido nesse ambiente portuário quando criança.
As imagens ajudam a gente a perceber melhor o significado da capoeira regional e o porquê de mestre Bimba ter transposto certos rituais acadêmicos para a sua escola. Fotos e depoimentos mostram que o mestre se transformou no centro em torno do qual se uniram vários estudantes de Medicina de Salvador. Em várias fotos, vemos Bimba cercado por estudantes brancos de paletó e gravata. Assim, talvez como forma de demarcar seu status e também como estratégia para se aproximar da vadiação, os seus discípulos instituíram cerimônias próprias do seu meio social no ambiente da capoeira.
A prova de ingresso na academia -- suportar uma gravata do mestre por alguns minutos e fazer uma queda de rins -- dá pistas de que os alunos entravam lá sabendo que entrariam em contato com outra cultura corporal. Talvez tenha sido o primeiro ritual de iniciação da regional: deixar o aluno inseguro, constrangido com os novos movimentos que ele iria aprender, numa espécie de recado corporal: "você está entrando em outro mundo, num mundo de mistérios que lhe serão revelados à medida em que você avançar no aprendizado".
Algo parecido com isso é feito pelo mestre Pombo: a desestabilização do neófito, privando-o do seu conforto corporal e de sua segurança e, ao mesmo tempo, tornando-o mais sensível aos ensinamentos do mestre, já que ficou demonstrado que o aluno nada sabe. Uma modificação corporal será atingida através da modificação de sua zona de conforto, da superação de seus bloqueios e inibições. mas, para que isso seja realizado, você deve desenvolver auto-disciplina e uma subordinação ao mestre.
Taí um método de ensino que não tem nada a ver com as que são utilizadas hoje em dia: a desestabilização do aluno para fazê-lo sentir no próprio corpo que ele nada sabe, que ele terá que modificar toda a sua relação com o próprio corpo e, em conseqüência, vários aspectos da sua relação com o mundo . Esse é o lado místico do ensinamento da capoeira regional.
Daí o carisma que cerca personalidades como os velhos mestres de capoeira: para eles, a educação é iniciação, e o mestre é o portador de um segredo. Quem lê as crônicas de Itapoã e os testemunhos de dr. Decânio sobre o mestre percebe isso. Algo dessa concepção tradicional sobrevive no carisma do mestre moderno, chegando a ser apropriada empresarialmente.
Ao contrário do que um amigo meu comentou, não era só busca por status o que unia o grupo de alunos do mestre Bimba; mas uma sensação que tem a ver com o pertencimento a um grupo quase místico do qual o mestre é a personificação e a moldura que determina qual a natureza da interação entre as partes.
Um sociólogo atual fala do presentismo como forma de sociabilidade que sempre esteve por trás das identificações grupais. Uma forma de se esquecer da morte por meio do encontro com outras pessoas e da fruição do momento, do hedonismo. A união em torno do mestre alimentava essa identificação grupal, primeva. Sem ele, o grupo, a vida desmoronaria: quem vê a tristeza de dr. Decânio quando fala da partida do mestre e de sua morte percebe que era disso que se tratava. Era isso que devia estar por trás da verdadeira adoração que os alunos sentiam por Manoel dos Reis Machado.
Daí que o aumento da auto-confiança era apenas a ponta do iceberg do efeito que as aulas do mestre tinham sobre os discípulos. Talvez seja uma crítica que caiba: se Bimba foi educador, a educação que deu aos seus discípulos não se restringiu à auto-estima. Isso seria reduzir o papel do mestre a um livro de auto-ajuda.
Percebi que algumas das idéias principais de Muniz Sodré -- que aparece no fime com o apelido de Americano -- estavam lá: a sugestão da capoeira como sendo um saber corporal afro-brasileiro foi mostrada através das imagens dos estivadores negros no porto de Salvador carregando sacos na cabeça; a relação de mestre Bimba com os estivadores apareceu na história que dr. Decânio contou sobre Bimba ter vivido nesse ambiente portuário quando criança.
As imagens ajudam a gente a perceber melhor o significado da capoeira regional e o porquê de mestre Bimba ter transposto certos rituais acadêmicos para a sua escola. Fotos e depoimentos mostram que o mestre se transformou no centro em torno do qual se uniram vários estudantes de Medicina de Salvador. Em várias fotos, vemos Bimba cercado por estudantes brancos de paletó e gravata. Assim, talvez como forma de demarcar seu status e também como estratégia para se aproximar da vadiação, os seus discípulos instituíram cerimônias próprias do seu meio social no ambiente da capoeira.
A prova de ingresso na academia -- suportar uma gravata do mestre por alguns minutos e fazer uma queda de rins -- dá pistas de que os alunos entravam lá sabendo que entrariam em contato com outra cultura corporal. Talvez tenha sido o primeiro ritual de iniciação da regional: deixar o aluno inseguro, constrangido com os novos movimentos que ele iria aprender, numa espécie de recado corporal: "você está entrando em outro mundo, num mundo de mistérios que lhe serão revelados à medida em que você avançar no aprendizado".
Algo parecido com isso é feito pelo mestre Pombo: a desestabilização do neófito, privando-o do seu conforto corporal e de sua segurança e, ao mesmo tempo, tornando-o mais sensível aos ensinamentos do mestre, já que ficou demonstrado que o aluno nada sabe. Uma modificação corporal será atingida através da modificação de sua zona de conforto, da superação de seus bloqueios e inibições. mas, para que isso seja realizado, você deve desenvolver auto-disciplina e uma subordinação ao mestre.
Taí um método de ensino que não tem nada a ver com as que são utilizadas hoje em dia: a desestabilização do aluno para fazê-lo sentir no próprio corpo que ele nada sabe, que ele terá que modificar toda a sua relação com o próprio corpo e, em conseqüência, vários aspectos da sua relação com o mundo . Esse é o lado místico do ensinamento da capoeira regional.
Daí o carisma que cerca personalidades como os velhos mestres de capoeira: para eles, a educação é iniciação, e o mestre é o portador de um segredo. Quem lê as crônicas de Itapoã e os testemunhos de dr. Decânio sobre o mestre percebe isso. Algo dessa concepção tradicional sobrevive no carisma do mestre moderno, chegando a ser apropriada empresarialmente.
Ao contrário do que um amigo meu comentou, não era só busca por status o que unia o grupo de alunos do mestre Bimba; mas uma sensação que tem a ver com o pertencimento a um grupo quase místico do qual o mestre é a personificação e a moldura que determina qual a natureza da interação entre as partes.
Um sociólogo atual fala do presentismo como forma de sociabilidade que sempre esteve por trás das identificações grupais. Uma forma de se esquecer da morte por meio do encontro com outras pessoas e da fruição do momento, do hedonismo. A união em torno do mestre alimentava essa identificação grupal, primeva. Sem ele, o grupo, a vida desmoronaria: quem vê a tristeza de dr. Decânio quando fala da partida do mestre e de sua morte percebe que era disso que se tratava. Era isso que devia estar por trás da verdadeira adoração que os alunos sentiam por Manoel dos Reis Machado.
Daí que o aumento da auto-confiança era apenas a ponta do iceberg do efeito que as aulas do mestre tinham sobre os discípulos. Talvez seja uma crítica que caiba: se Bimba foi educador, a educação que deu aos seus discípulos não se restringiu à auto-estima. Isso seria reduzir o papel do mestre a um livro de auto-ajuda.