segunda-feira, agosto 13, 2007

A capoeira ilumindada, de novo

Assisti novamente ao filme "Mestre Bimba: a capoeira iluminada" e ele me pareceu melhor agora do que da primeira vez que o vi. Acho que, naquela oportunidade, estava muito preocupado com as "terríveis modificações" que alguns grupos teriam feito na regional ou com a utilização do filme como propaganda de determinada agremiação. Esses filtros me fizeram avaliar o filme de uma forma que ele não merecia. Afinal de contas, quem sou eu para determinar qual a interpretação correta das tradições da vadiação?


Percebi que algumas das idéias principais de Muniz Sodré -- que aparece no fime com o apelido de Americano -- estavam lá: a sugestão da capoeira como sendo um saber corporal afro-brasileiro foi mostrada através das imagens dos estivadores negros no porto de Salvador carregando sacos na cabeça; a relação de mestre Bimba com os estivadores apareceu na história que dr. Decânio contou sobre Bimba ter vivido nesse ambiente portuário quando criança.


As imagens ajudam a gente a perceber melhor o significado da capoeira regional e o porquê de mestre Bimba ter transposto certos rituais acadêmicos para a sua escola. Fotos e depoimentos mostram que o mestre se transformou no centro em torno do qual se uniram vários estudantes de Medicina de Salvador. Em várias fotos, vemos Bimba cercado por estudantes brancos de paletó e gravata. Assim, talvez como forma de demarcar seu status e também como estratégia para se aproximar da vadiação, os seus discípulos instituíram cerimônias próprias do seu meio social no ambiente da capoeira.


A prova de ingresso na academia -- suportar uma gravata do mestre por alguns minutos e fazer uma queda de rins -- dá pistas de que os alunos entravam lá sabendo que entrariam em contato com outra cultura corporal. Talvez tenha sido o primeiro ritual de iniciação da regional: deixar o aluno inseguro, constrangido com os novos movimentos que ele iria aprender, numa espécie de recado corporal: "você está entrando em outro mundo, num mundo de mistérios que lhe serão revelados à medida em que você avançar no aprendizado".

Algo parecido com isso é feito pelo mestre Pombo: a desestabilização do neófito, privando-o do seu conforto corporal e de sua segurança e, ao mesmo tempo, tornando-o mais sensível aos ensinamentos do mestre, já que ficou demonstrado que o aluno nada sabe. Uma modificação corporal será atingida através da modificação de sua zona de conforto, da superação de seus bloqueios e inibições. mas, para que isso seja realizado, você deve desenvolver auto-disciplina e uma subordinação ao mestre.


Taí um método de ensino que não tem nada a ver com as que são utilizadas hoje em dia: a desestabilização do aluno para fazê-lo sentir no próprio corpo que ele nada sabe, que ele terá que modificar toda a sua relação com o próprio corpo e, em conseqüência, vários aspectos da sua relação com o mundo . Esse é o lado místico do ensinamento da capoeira regional.


Daí o carisma que cerca personalidades como os velhos mestres de capoeira: para eles, a educação é iniciação, e o mestre é o portador de um segredo. Quem lê as crônicas de Itapoã e os testemunhos de dr. Decânio sobre o mestre percebe isso. Algo dessa concepção tradicional sobrevive no carisma do mestre moderno, chegando a ser apropriada empresarialmente.



Ao contrário do que um amigo meu comentou, não era só busca por status o que unia o grupo de alunos do mestre Bimba; mas uma sensação que tem a ver com o pertencimento a um grupo quase místico do qual o mestre é a personificação e a moldura que determina qual a natureza da interação entre as partes.



Um sociólogo atual fala do presentismo como forma de sociabilidade que sempre esteve por trás das identificações grupais. Uma forma de se esquecer da morte por meio do encontro com outras pessoas e da fruição do momento, do hedonismo. A união em torno do mestre alimentava essa identificação grupal, primeva. Sem ele, o grupo, a vida desmoronaria: quem vê a tristeza de dr. Decânio quando fala da partida do mestre e de sua morte percebe que era disso que se tratava. Era isso que devia estar por trás da verdadeira adoração que os alunos sentiam por Manoel dos Reis Machado.



Daí que o aumento da auto-confiança era apenas a ponta do iceberg do efeito que as aulas do mestre tinham sobre os discípulos. Talvez seja uma crítica que caiba: se Bimba foi educador, a educação que deu aos seus discípulos não se restringiu à auto-estima. Isso seria reduzir o papel do mestre a um livro de auto-ajuda.

terça-feira, agosto 07, 2007

A cocorinha

Camaradas, um dos motivos por que fui seduzido pelas aulas do mestre Pombo de Ouro foi a sensação de entrar em contato com o espírito de uma capoeira mais próxima daquela jogada tradicionalmente em Salvador, não importando o rótulo regional ou angola. Vou dar um exemplo meio estranho mas que é muito significativo.


Num determinado dia, ensinando a cocorinha para algum dos alunos -- movimento presente em todas as seqüências da regional -- o mestre fala: "cocorinha, como o nome diz, é a posição de fazer cocô, então tem que agachar". É assim que a gente percebe que certos movimentos de estilos mais tradicionais vieram de gestos e posturas de corpo antigas e até mesmo em extinção. Digo em extinção porque essa postura de corpo corre perigo de desaparecimento com a disseminação das privadas nos banheiros do país. Ora, talvez seja por ser considerada arcaica que ela foi abandonada tanto por muitos grupos desejosos de se identificar com a modernidade quanto por muitos capoeiristas que se sentiam constrangidos ao realizá-la.


Ainda sobre a cocorinha, Frede Abreu escreveu que, nos intervalos entre um frete e outro, os escravos carregadores da Salvador do século XIX esperavam os carretos acocorados em seus cantos de trabalho. Um outro contexto de utilização da mesma técnica corporal.


As diferentes técnicas corporais pressupõem diferentes relações da pessoa com o próprio corpo. Por exemplo, a utilização da cabeça como apoio para carregar peso. Um capoeirista e estudioso americano chamado Greg Downey ressalta que a cabeça foi -- e ainda é -- muito utilizada pelas classes populares brasileiras para carregar objetos. Existem registros dos mesmos escravos estivadores baianos esvaziando a carga de barcos inteiros carregando sacos sobre suas cabeças; e, além disso, quem nunca viu, ainda hoje no interior do país, lavadeiras de roupa se utilizarem da mesma técnica?


Ora, da utilização da cabeça como apoio para carregar peso até a sua utilização como arma é um pulo! Uma cabeça que agüenta o peso de vários sacos de arroz pode muito bem se transformar numa arma perigosíssima. E mais, se está acostumada a equilibrar peso, pode também ser utilizada como ponto de apoio do corpo no chão. É por isso que a capoeira vai exigir dos setores médios da sociedade brasileira uma outra relação com o próprio corpo.


Cito o meu caso como exemplo: tenho um verdadeiro bloqueio quando se trata de colocar a cabeça no chão. É que me acostumei a conceber a cabeça como uma parte frágil, lugar do pensamento e só; fico com medo instintivo de torcer o pescoço.


As próprias seqüências de ensino da regional muito provavelmente tenham sido desenvolvidas para inculcar essa nova relação com o corpo nos alunos do mestre Bimba, desacostumados com o jeito de se movimentar da vadiação. Aquele mesmo camarada americano escreveu que o germe da diferenciação angola-regional surgiu a partir daí. Vários movimentos da vadiação deviam gerar sensações de desconforto, constrangimento e inibição na primeira geração da regional; além disso, como se buscava uma forma de defesa pessoal, muitos movimentos da vadiação tiveram que ser adaptados para poderem ser usados numa luta.
Assim, da apropriação dos movimentos da capoeira pelas classes médias baianas foram desenvolvidos novos padrões de movimentos dentro da brincaderia.
Mudar a relação da pessoa com o próprio corpo pode significar também modificar a própria forma de se relacionar com o mundo. Muniz Sodré, outro estudioso e ex-aluno de mestre Bimba, já escreveu que para o pensamento africano não existe separação entre corpo e mente. O corpo pensa e é portador de toda uma visão de mundo. Hoje em dia vários estudiosos vêm prestando atenção nesse aspecto da relação corpo e consiência, estudando as várias práticas esportivas.

Chegam então a perceber que a imbricação corpo e mente não acontece só na capoeira; pode ser vista também em outros esportes. Tostão -- ex-jogador, médico e atualmente cronista esportivo -- volta e meia aponta para a existência desse fenômeno no futebol, citando o exemplo do "pensamento corporal" de craques como Pelé, Romário e os dois Ronaldos.
Baseado nessa idéia de que a modificação do corpo interfere na apreensão e na construção da realidade é que outro ex-praticante e estudioso da capoeira, César Barbieri, vai dizer que a vadiação é "um jeito brasileiro de aprender a ser". Tudo bem, pode parecer uma afirmação nacionalista, mas por trás dela existe uma idéia interessante: a de que uma espécie de espiritualidade da capoeira é desenvolvida a partir do corpo do praticante. E como este pode ser treinado, não importa muito sua nacionalidade.

Até a próxima, camaradas!