Capoeira Regional: geração espontânea? (2ª parte)
É claro que tanto a concepção de esporte de Bimba quanto a de Pastinha foram interpretações singulares da concepção elitista de esporte nas quais se inspirava o projeto da Ginástica Nacional de Zuma. Basta ler os escritos de Pastinha e os testemunhos dos alunos de Bimba para percebermos isso.
O projeto da Ginástica Nacional tinha que ver com a formação de jovens de corpos sãos e mentes sãs. Esse projeto distanciava a capoeiragem carioca das suas origens afro-brasileiras, mas era nacionalista. Tinha o objetivo de criar uma ginástica brasileira, em contraposição com a sueca e a francesa, tendo o boxe inglês como modelo. A capoeira teria a função eugênica, higienista e civilizatória de melhorar o físico e o psíquico do povo brasileiro, tornando-o saudável e confiante nas suas capacidades e formando uma geração que colocaria o país no rol das nações civilizadas e desenvolvidas. É importante salientar que, subordinado ao ideal de progresso civilizatório, estava presente nesse projeto uma valorização indireta do malandro e do mestiço brasileiros como os inventores da luta.
Essa função da capoeira como projeto civilizatório também está, em algum grau, contemplada nas sistematizações de Bimba e Pastinha. Ambos se utilizaram da brecha aberta pelo projeto da ginástica brasileira para obterem o reconhecimento da arte que praticavam. Porém, em suas escolas aquela idéia convivia – contraditoriamente, até -- com visões de mundo do universo afro-brasileiro e popular próprias do meio cultural em que viviam aqueles mestres. Assim, os dois projetos baianos de capoeira foram produtos culturais híbridos. Neles, o negro não era apenas o inventor, mas a fonte da visão de mundo que explicava o brinquedo.
Assim, podemos dizer que a visão de mundo da capoeira regional é muito marcada pela idéia de que o perigo pode estar à espreita em todos os lugares; por isso o capoeirista teria de estar em estado de permanente prontidão, ou seja, ele deveria ser capaz de intuir e antecipar, de maneira quase mística, os perigos que se apresentam tanto dentro quanto fora da roda de capoeira. Essa prontidão era maliciosa, pois nas palavras do mestre Bimba, “capoeira é maldade”. Desenvolvendo a faculdade da prontidão, o capoeirista estaria sempre preparado para lidar com qualquer cilada que encontrasse, pois saberia se defender de maneira que sempre sairia
Já a visão da capoeira pastiniana parece ter a ver com o fluir de duas forças contraditórias que formam o mundo, pois a capoeira seria negativa e positiva, mas ao mesmo tempo, “tudo o que a boca come”. O contínuo fluir desses opostos explicaria tanto os movimentos dos capoeiras dentro da roda como as ações humanas fora dela. Nessa visão da brincadeira, aparecem as ambigüidades: a cooperação e a traição, a camaradagem e a malícia, já que no universo afro quem come “tudo o que a boca come” é Exu, o orixá tradutor e traidor que se encarrega da comunicação entre os homens e os deuses; responsável pelos desentendimentos e ciladas que encontramos na roda da vida e na roda de capoeira.
É claro que essas concepções de capoeira foram reinterpretadas de muitas maneiras. Nos anos 60, o surgimento da regional-senzala. Nos anos 80, a volta da capoeira angola. Nos anos 90, a resposta dos megagrupos. Tudo isso articulado com a permanência de estilos locais e com a internacionalização do brinquedo. Na verdade, a capoeira parece ultrapassar qualquer concepção que seus praticantes elaboram sobre ela. Nenhuma delas a explica definitivamente nem esgota futuras interpretações.
Adriano "Moreno"