terça-feira, junho 20, 2006

Que diabos é "saroba"?

Hoje gostaria de tecer comentários sobre um termo que já foi muito usado no meio capoeirístico de Brasília. Trata-se do adjetivo "saroba", utilizado para depreciar o jogo de um capoeirista. Dando uma olhada nos significados que tal palavra possui podemos colocar em evidência certos valores introjetados por nós no meio da brincadeira.
Da primeira vez que ouvi tal palavra, não sabia o que significava. Logo aprendi que era o antônimo de "sarado", termo emprestado do ambiente das academias de musculação e que designa a pessoa que tem um corpo trabalhado, musculoso. Seria o modelo do que todos os malhadores da academia -- ou pelo menos grande parte deles -- queria ser.
Assim, "saroba" seria o homem ou a mulher que, na academia de musculação, não tem um corpo malhado. Seria um iniciante na musculação, podendo ser gordo ou magro, mas o importante é que não está "bem cotado" na academia por seu corpo não corresponder ao modelo perseguido.
Esses termos devem ter chegado ao meio da capoeira com a invasão da brincadeira às academias de ginástica e com o constante intercâmbio entre a capoeira e a musculação. Só que me parece que tal termo ganhou outros significados no meio da nossa prática. Vejamos.
Já treinei em alguns grupos que tinham uma visão de capoeira mais voltada para a luta e para o esporte. Me lembro de que o mestre, nos batizados, nos chamava de "atletas" e, em algumas conversas depois dos treinos, nos estimulava a virar lutadores de capoeira. Lembro que colegas meus me falaram para não jogar sorrindo e fechar mais a cara para mostrar que eu era mau. Nesse ambiente, o termo "saroba" era muito usado -- mais pelos alunos, não pelo mestre -- e deixava passar um preconceito muito grande. Geralmente era um adjetivo usado contra capoeiristas de outro grupo ou contra um outro grupo como um todo. Era meio que um artifício para criar uma identidade: éramos os sarados contra todos os outros, sarobas.
E "saroba" podia ser utilizado para designar aquele capoeirista que não tinha uma certa estética de jogo -- a ginga plástica, os golpes estendidos, os floreios emprestados da ginástica olímpica, a velocidade meio neurótica. Era uma coisa associada a ser antiquado, a estar fora de moda, a um jogo bruto, no sentido de não-cultivado, não civilizado dentro de um grupo de capoeira decente. Por isso,ter um jogo sarado era o objetivo de cada um de nós, pois não queríamos ser "bárbaros", ocupando, por isso, uma posição menos respeitada no grupo.
Em outro grupo com que treinei, o termo não era utilizado, mas a idéia de que o grupo tinha uma missão civilizatória também existia, e tinha um sentido um pouco mais exacerbado de preconceito social. Geralmente, os brutos eram os capoeiristas das Satélites, porque seriam violentos e não saberiam encarar a capoeira como arte, brincadeira. Também aqui se se construía uma identidade de grupo. Agora, os "outros" não eram aqueles que jogavam uma capoeira feia, ineficiente e bruta, mas os "adeptos da barbárie" que transformaram a capoeira numa coisa violenta e feia, e, para completar, ainda eram, em sua maioria, das Satélites! Também eles não seriam civilizados porque não entendiam a riqueza cultural da vadiação, o seu valor como veículo de interação social. Jogar capoeira, então, era jogar sem violência (sem malícia?), seríamos uma ilha da capoeira civilizada e intelectualizada em meio à barbárie que dominava os arredores da cidade.
Para concluir, resta esclarecer que tais idéias foram gestadas num momento em que havia um maior isolamento entre os grupos de capoeira da cidade, num período imediatamente posterior a uma crise na brincadeira. Um tal isolamento contribuiu muito para o surgimento de idéias como essas. Ainda bem que, atualmente, o conhecimento do outro na capoeira de Brasília, mesmo para alguém que não tem muita penetração no meio, parece estar aumentando, nos conduzindo para um momento de diálogo e conhecimento do outro em bases mais reais.
Moreno

segunda-feira, junho 05, 2006

Alguma historiazinha da capoeira

Camaradas, é sempre muito instrutivo conversar com os mais antigos, você fica sabendo aspectos da história da capoeira não através de livros, mas através de seus próprios personagens. Como escrevi em uma postagem anterior, é com eles que se conhece aquele lado mais prosaico da capoeira, aquelas histórias com "h" minúsculo que, no final das contas, têm a ver com fatos fundamentais da história da brincadeira.
Pois bem, numa conversa com o mestre Pombo de Ouro, fiquei sabendo que a primeira vez que ele viu o "leque" na capoeira foi numa "Grande Roda" na década de 80. A "Grande Roda" era talvez o maior evento de capoeira do DF, organizada, acho que anualmente, pelo mestre Zulu, contava com a participação de capoeiristas de todo Brasil.
Fiquei pensando sobre isso: pô! o leque, então, não tem muito mais de 20 anos! É um movimento novíssimo na capoeira e deve ter surgido nos anos 80 a partir de influências da ginástica olímpica, da dança moderna ou das artes marciais orientais. É interessante pensar que os mestres mais antigos nunca deram tal golpe não porque não conseguiam, mas porque ele não existia! Foi incorporado pela capoeira depois de seu auge físico! Hoje em dia, em qualquer roda que se vá, no Brasil ou no exterior, podemos ter a certeza de que veremos pelo menos um leque, e feito por qualquer aluno mediano. Ou seja, tal movimento é uma técnica corporal que originalmente não fazia parte da capoeira mas que por ela foi incorporada.
Outro golpe que deve ter mais ou menos a mesma origem é o "martelo rodado". Quem assiste à novela "Sinhá Moça" pode ver, na abertura, as sombras de dois escravos jogando capoeira: um deles solta um martelo rodado. Ora, não sou especialista em história da capoeira, mas acho que é muito provável que nenhum cronista ou viajante de meados do século XIX tenha visto tal golpe. Sabemos através de cronistas que, no final do século XIX, existiam várias formas de golpes desequilibrantes, cabeçadas e mesmo navalhadas, mas não o martelo rodado. Segundo o professor Liberac Pires, existia mesmo uma técnica de se lançar a navalha aberta amarrada em um cordão para que, depois de o alvo ser atingido, a mesma pudesse ser recuperada com um puxão. Era uma "navalha bumerangue"! Uma técnica que foi deixada de lado tanto pelo mestre Bimba quanto pelo mestre Pastinha na codificação da regional e da angola. Isso faz até pensar em quanta coisa foi abandonada nesse tempo todo...
Estou escrevendo sobre a história dessas técnicas porque caiu em minhas mãos o texto de uma conferência que o antropólogo Marcel Mauss (1872-1950) deu em 1934, no qual o autor cunha o termo "técnicas corporais" para designar " as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo". Ou seja, para ele, o próprio corpo é criado pela cultura, pela sociedade em que os homens vivem. E ele cita exemplos de técnicas corporais que vão do mundo do esporte até as sociedades tradicionais.
Existe mesmo um exemplo que relaciona a magia e uma técnica da corrida entre os aborígines australianos que lembra muito a técnica de obtenção de resistência na capoeira: cantando repetidamente uma canção durante a perseguição a sua presa, o caçador consegue forças para vencer o animal pelo cansaço! Não é isso o que alguns chamam de "transe capoeirano"? O esquecimento de si mesmo e, portanto, do próprio cansaço pelo capoeirista, propiciado pelas músicas e pelo ritmo do berimbau?
Segundo esse mestre da antropologia, o processo pelo qual as técnicas corporais são preservadas chama-se "imitação prestigiosa": as pessoas imitam atos bem sucedidos que elas viram serem efetuados por outros em quem confiam ou que possuem autoridade sobre elas. Só que a partir desse processo não acontece apenas a preservação de técnicas corporais, mas também a sua transformação. Vide o exemplo do leque e do martelo rodado.
E mais, do contato entre técnicas corporais diferentes é que surgem variações dentro de uma mesma prática esportiva. Por exemplo, é conhecidíssima uma foto do mestre Bimba novinho gingando lá pelos idos dos anos 30. Quem não viu, entre no sítio do Dr. Decânio. Nela, vemos o mestre gingando encolhido e relaxado, como hoje em dia esperaríamos que jogasse um angoleiro. Isso é porque a técnica corporal da ginga de mestre Bimba era mais próxima da vadiação das classes populares de Salvador do que da capoeira esportiva dos dias de hoje! Matias Assunção sugere a possibilidade de que o centro de gravidade da capoeira regional teria sido deslocado para cima pelos alunos de Bimba, a maioria não-ligados à tradição da vadiagem baiana. Olha aí um exemplo de variação e transformação das técnicas corporais! Hoje em dia, o braço tem que proteger o rosto, a perna da frente tem que flexionar tantos graus... e por aí vai . E se não fizer, tá lascado, apanha ou é considerado antiquado!
A potencialização da imitação prestigiosa pode ter efeitos meio complicados na capoeira. Em conversas com alguns mestres, fiquei sabendo que alguns grupos calcam todo o seu modelo de capoeira em determinados alunos que se destacam, numa espécie de imitação prestigiosa elevada ao quadrado, porque sistematizada. Isso pode prejudicar fisicamente e mesmo psicologicamente os alunos, já que nem todos possuem as mesmas características físicas do modelo: explosão muscular, resistência da articulação, estrutura corporal e flexibilidade, para citar algumas.
Por hoje é só, senhores. Depois de ter escrito essa postagem que tem até antropologia, não agüento mais nada. Vou desligar a máquina e utilizar a técnica corporal do cochilo de boca aberta sentado em poltrona. Ainda assim, espero ter contribuído um pouco mais para a sua compreensão da nossa brincadeira.

Moreno

sexta-feira, junho 02, 2006

O gênio da raça

Em conversas com o "amigo das narinas de cadáver", surgiu o seguinte assunto: por que o Mestre Pombo pensa que não se deve ganhar dinheiro com capoeira?
Tendo a responder da seguinte maneira: para o mestre Pombo, capoeira é segredo, um conhecimento esotérico que deve permanecer fora do mundo da mercadoria. É necessário lembrar que o mestre é iniciado nos segredos da Maçonaria e da Umbanda, e isso deve ter alguma influência na sua concepção da brincadeira.
A visão que o mestre Pombo tem sobre a capoeira é mística como a de Nestor Capoeira: "Na Ásia, existe o Zen, a Europa inventou a Psicanálise, no Brasil temos o jogo da capoeira". A capoeira seria algo como o "caminho do meio", seu objetivo seria o aperfeiçoamento individual e espiritual; ajudar o homem a conviver com suas neuroses, limitações, seu lado animal e superá-los. Desenvolver e descobrir o seu jeito de jogar guarda um paralelo com desenvolver-se no sentido de tornar-se um ser pleno.
Já para o mestre Pombo, todas as pessoas possuem dentro de si o Bem e o Mal, o lado Espiritual e o lado Animal, e o principal objetivo da capoeira seria fazer com que o indivíduo tomasse consciência desses seus dois lados e trabalhasse para superar seu lado mal e instintivo, desenvolvendo o lado bom e espiritual. O mal, a malícia, poder ser bem aproveitada na capoeira, mas sob o comando da técnica, da parte mais elevada do ser humano. Algo parecido é apontado pelos grandes mestres das artes marciais orientais como o objetivo de seus treimamentos.
Alguns velhos mestres de capoeira também possuíam uma visão misteriosa da brincadeira. A própria frase de mestre Pastinha -- "Capoeira é tudo o que a boca come"-- não se parece com a resposta a um enigma esotérico? O que ele estava tentando dizer com isso?

Mas, voltando ao mestre Pombo de Ouro, arrisco dizer que, apesar de dar muita ênfase à diferenciação entre as escolas de capoeira em suas conversas com seus alunos -- preocupa-se em demarcar angola e regional e mostar certo desprezo pelos estilos contemporâneos -- talvez a sua maior característica seja a de ajudá-los a descobrir o seu próprio estilo de capoeira. Isso, para o mestre, compara-se a uma busca pelo auto-conhecimento e pelo desenvolvimento intelectual, emocional e mesmo espiritual do aluno. Ao mestre caberia apenas despertar o que está adormecido no iniciante, o resto, fica a cargo do próprio discípulo, guiado por seus interesses no campo da brincadeira. A transformação atlética e espiritual é feita a partir do próprio indivíduo.
Sobre a relação do método do mestre com o esoterismo, arrisco fazer algumas digressões. Acabei de ler um livro de uma socióloga que falava sobre a magia na medicina umbandista. (Da doença à desordem: a magia na Umbanda -- Autor: Paula Montero). Uma das principais partes do livro falava que a medicina científica tendia a encarar o paciente, como um "corpo morto", fragmentado em diversos órgãos e membros de sua anatomia e que não estava inserido numa família, num ambiente pertencente a determinada classe social. A magia umbandista, ao contrário, tenderia a encarar o paciente como inserido num mundo social e espiritual, seu corpo sendo um campo de batalha entre forças do Bem e forças do Mal, tanto no plano material como no espiritual.
Assim, para a umbanda, o corpo de cada indivíduo seria específico e estaria participando de um todo maior, seria um "corpo histórico". Daí o fato de que a magia umbandista tem sucesso na cura de doenças cujas causas têm que ver com a inserção social problemática dessas pessoas, ao passo que a medicina científica não tem.
Creio que podemos comparar o método de treinamento baseado em repetições à medicina científica. O método Senzala encara o aluno como um corpo morto. O método do mestre Pombo, como a magia umbandista, encara o aluno como um todo, como um corpo histórico.
Isso tem implicações interessantes para a capoeira. Temos aqui um método de ensino alternativo ao que vem sendo utilizado em todas as partes do mundo, seja por angoleiros, regionais ou contemporâneos. Um método que teria como base um sistema simbólico umbandista que, como apontado por Paula Montero, carrega uma visão de mundo elaborada pelas classes populares brasileiras. É por isso que eu considero o mestre Pombo de Ouro como um gênio, um "gênio da raça".