quarta-feira, julho 26, 2006

O lado sombrio da expansão da capoeira 2

O jogo da capoeira, assim como todos os jogos, prepara os indivíduos para encarar as dificuldades da realidade, expõe a eles certos costumes da sua sociedade (Isso escrevem os antropólogos: penso na briga de galos de Geertz, na capoeira para Lewis, nas bolas de gude para Carvalho). Pensa isso também o pessoal da somaterapia, utilizando a capoeira em sua forma de tratamento psicólogico. Nesse ponto, caras importantes como o Dr. Decânio ou como o próprio mestre Pombo de Ouro têm alguma razão: "capoeira é boa para a vida" e "a verdadeira roda é a vida".
Acontece que, hoje em dia, a leitura que a capoeira fornece sobre a realidade humana, própria da sua natureza de manifestação cultural, vem sendo instrumentalizada por uma lógica de domínio colonial adaptada à época da globalização, como escreve a professora portuguesa Ana Jaqueira. Para afirmar o monopólio da capoeira no exterior, os grandes grupos acabam por mistificar aquela característica que a capoeira possui pela sua própria constituição, transformando-a numa espécie de segredo que só foi revelado aos brasileiros e, dentre eles, a um determinado grupo de capoeira e, especialmente, a um determinado mestre.
Daí pode-se dizer que, assim como o nacionalismo passa a ter um componente xenófobo e racista quando utilizado pelo imperialismo, a capoeira passa a ter uma característica de seita e franquia comercial quando utilizada por grupos cujo objetivo é a própria expansão e a manutenção do seu monopólio.
A capoeira estaria incorporando em sua organização características da Amway! Só que o objetivo aqui seria não mais vender produtos de limpeza, mas a capoeira, sua "filosofia" e a "cultura brasileira" (se é que existe isso), produto que parece estar em alta no mercado internacional. A idolatria por professores e mestres seria o substituto da idolatria pelos membros superiores na pirâmide da organização.
Para mostrar uma suposta superioridade de uma franquia, inventam-se movimentos que não possuem a mínima utilidade numa roda; descartam-se outros alegando estarem ultrapassados, serem "sarobas", ou não possuírem efetividade; promovem-se garotos-propaganda bombados, verdadeiros acrobatas e contorcionistas que aparecem em documentários sobre a capoeira, considerada parte de uma "tradicional cultura brasileira". Penso, inclusive, nesse último documentário sobre o Mestre Bimba.
De repente, jogar capoeira perdeu um pouco de sua graça.

sexta-feira, julho 21, 2006

O lado sombrio da expansão da capoeira

Senhores, a postagem de hoje vai pelo caminho inverso daquele da anterior. Se ontem defendi um poder quase redentor da capoeira, hoje, depois de ler um trabalho de uma professora portuguesa sobre a expansão da capoeira pela Europa, devo concordar que existe um lado sombrio no seu crescimento. O texto encontra-se no Portal Capoeira e o download pode ser feito no endereço http://www.portalcapoeira.com/index.php?option=com_docman&task=doc_details&Itemid=253&gid=76.
A professora portuguesa Ana Jaqueira coloca que existe um componente doutrinário e autoritário muito forte no modo como se estruturam os grupos de capoeira na atualidade. Segundo ela, a capoeira baseia seu crescimento numa estrutura de franquias na qual a ligação e a interdependência entre seus membros é feita por uma pretensa filosofia de vida que seria própria da capoeira. Essa "filosofia" emanaria do mestre do proprietário mundial da franquia, que seria a fonte de toda a sabedoria e de todo o prazer que os praticantes obteriam com o jogo. Toda a excitação causada pelo tal "transe capoeirano" seria distribuído aos alunos pelo mestre.
Os mega-grupos tratariam de fortificar a sua marca através da invenção de movimentos que seriam próprios de seu estilo de capoeira. Tais inovações não precisam obedecer ao princípio da eficiência marcial nem a qualquer outro, servem apenas para criar um registro corporal em todos os alunos do grupo. Penso, então, nas esquivas da cadeira, no jogo miudinho, nos balanços inventados por certos grupos, nas gingas com o braço protegendo o rosto, nos vários floreios malucos que vemos em documentários, vários deles ensinados em aulões, em acampamentos, eventos e batizados por todo o mundo. Tudo, segundo seus inventores, "dentro da tradição".
Tal prática vai contra o discurso de que a capoeira seria uma prática libertária, o qual é repetido por todos os grupos atualmente.
É claro que essa descrição feita pela professora encaixa-se melhor a determinados grupos, mas é interessante saber que existem elementos dentro da nossa prática que podem muito bem servir ao autoritarismo e serem exacerbados a ponto de se transformarem em fanatismo e em uma ideologia que justifica até a exploração de mão-de-obra.
Isso não quer dizer que a capoeira é inteiramente má, mas sim que ela seque aberta a influências de toda a parte, vindas da organização empresarial em franquias até a proliferação de seitas de auto-ajuda, passando por grupos de lideranças colegiadas e coletivos de orientação anarquista. É a disputa entre várias tendências que vai determinar o caminho que a prática vai seguir. E essa disputa vai ficar muito interessante porque, hoje em dia, ela está sendo travada por pessoas, estudiosos, instituições e grupos do mundo inteiro.
Moreno

terça-feira, julho 18, 2006

Por que jogo capoeira?

Depois de muito tempo, descobri que jogo capoeira para me situar na comunidade dos seres humanos. Participar de um grupo é uma forma de auto-conhecimento, de desenvolvimento e descobrimento da minha personalidade e da dos outros. Penso no grupo de capoeira e na roda de capoeira como ambientes onde eu posso me expressar como eu sou, onde eu posso estar no mundo, interagindo com outras pessoas. Por que é se mostrando que as suas qualidades boas ou más se revelam e é a partir daí que você pode se conhecer e trabalhar com elas.
Esse processo de auto-conhecimento, para mim, tem paralelos com o próprio desenvolvimento técnico do capoeirista. É na roda onde ficam evidentes as limitações e os recursos do jogador, o ponto de partida para o desenvolvimento do futuro de seu jogo. Grandes mestres e estudiosos da brincadeira frisam essa relação da roda de capoeira com a roda da vida, a primeira sendo uma miniatura da segunda. Assim, jogar capoeira não deixa de ser uma forma de buscar aperfeiçoamento pessoal, de aprender a conviver consigo mesmo e com os outros, de aprender a viver.
Esse assunto me leva de volta à pergunta daquele leitor: " Por que a capoeira está se espalhando pelo mundo?". Segundo Nestor Capoeira, o nosso brinquedo tem a ver fundamentalmente com o conhecimento de si e dos outros, com o saber se virar e manter o equilíbrio mental num mundo onde a falsidade esta presente em todos os lados. Está é uma resposta que leva em conta apenas os anseios individuais dos praticantes. Há outras que levam em conta um contexto mais geral e social da expansão da brincadeira.
Por exemplo, para Mathias Assunção os europeus estariam precisando da capoeira porque esta foi um produto da construção de uma identidade por pessoas cujo universo foi desmantelado pela escravidão numa terra desconhecida. Então, africanos de diversas etnias, seus descendentes nascidos no Brasil e, posteriormente, até europeus acabaram tendo que perder suas respectivas identidades e reconstruí-las. A capoeira seria tanto um produto quanto uma representação desse jogo de construção de identidades. Sendo então uma forma privilegiada de intercâmbio entre os diferentes.
Assim, a Europa de hoje estaria passando por uma experiência semelhante àquela pela qual passou (e vem passando?) o Brasil na fase de sua formação: o continente é hoje palco da interação entre diversos povos do mundo. Imigrantes do leste e do oeste, das ex-colônias africanas, asiáticas e americanas e do resto do Terceiro Mundo acabam se encontrando naquele apêndice da Ásia. Os caras precisam, então, aprender a lidar com as diferenças e construir uma base de convivência comum. Daí a sua necessidade de jogar capoeira.
Percebemos então que ambas as respostas, tanto a individualista quanto a social, chegam a um denominador comum: capoeira tem a ver com auto-conhecimento, conhecimento do outro e construção de identidades tanto no plano individual quanto no social.