segunda-feira, maio 29, 2006

O Porto, o corpo e a capoeira

Amigos, dessa vez escrevo lembrando a cidade do Porto, em Portugal, onde fiquei na casa de uma amiga de minha tia que estava fazendo o mestrado em Educação Física. Lá não joguei capoeira, mas conversei muito com esta professora que me hospedava. Ela me explicou alguma coisa sobre o que seria a sua dissertação: a diferença da cultura do corpo nas cidades do Rio de Janeiro e do Porto.
Segundo ela, ter um corpo malhado no Rio de Janeiro seria um sinal de distinção social. Para as mulheres, por exemplo, seria uma forma de mostrar sua independência, capacidade de iniciativa e força ao invés da dependência, passividade e fragilidade esperadas de um padrão de comportamento feminino tido como clássico. Assim, possuir gordurinhas no quadril, ou tê-lo um pouco avantajado, pelo menos na Zona Sul do Rio de Janeiro, está associado a um padrão de mulher ultrapassado.
Porém, existiria um lado perverso nesse novo padrão de beleza: perseguindo um corpo sarado as mulheres estariam erigindo como modelo um corpo masculinizado, musculoso e sem quadris. O feminismo das academias teria, então, uma face oculta androcêntrica.
No caso dos homens, o padrão corporal que demonstra força e independência seria mais fácil de ser conseguido, porém, muitos não se contentam com simplesmente estarem em boa forma e apelam para os anabolizantes. Para os homens, tamanho é documento, quanto maiores eles forem, mais admirados serão. Isso pode ser até compensação de uma timidez ou de uma falta de habilidade social. Ser forte, então, pode ser um meio de mostrar que se está integrado à sociedade das aparências em que vivemos hoje.
Sim, mas qual é a relação disso com a capoeira?--Pergunta o leitor mais atento. É que um corpo magro na vadiação pode significar --dependendo, é claro, do jogador-- uma sutileza na forma de brincar. Os corpos dos magrelos angoleiros, por exemplo, podem estar nos dizendo: "eu domino de outro jeito que não pela força", e isso seria uma forma de jogo até mais perigosa. Tal forma estaria mesmo muito próxima à forma de luta associada ao sexo feminino dentro e fora da roda. Um jogo mais sutil, enganador, porque jogado pelo mais fraco.
Acontece que, em muitos grupos e em muitas rodas temos visto que os capoeiristas mais graduados estão se "bombando" e aí o mesmo leitor afiadíssimo pode até perguntar se uma capoeira jogada por grandões que se impõem através do físico pode ser considerada uma arma do oprimido -- mais fraco-- contra o opressor, mais forte; do escravo contra o senhor, uma luta em que o importante seria a dissimulação do conflito e não o confronto direto. Um amigo leitor desse blog me disse que os negões estão mais para capitão-do-mato do que para escravos!
Mas o buraco é bem mais embaixo, essa não é uma questão simples. Por exemplo, todos os domingos vemos caras bombados na Roda da Torre. Os camaradas são como que garotos-propaganda daquele evento, quase que uma atração à parte, super-homens. No que diz respeito às mulheres, também encontramos a mulher negra sarada da periferia, com corpo esculpido e jogo "prá frente". Uma espécie de contrapartida feminina dos grandões.
Por um lado, eles simbolizariam uma capoeira que teria perdido um pouco de sua sutileza, mas por outro, vemos que o domínio que exercem naquele lugar e naquele momento muda a hierarquia da sociedade envolvente. Nesse caso, os mais fracos mandam.
E mais, não é só esse o tipo corporal que encontramos no ambiente da brincadeira; vemos hippies (adeptos de uma capoeira paz-e-amor?), negros com cabeça raspada (seria isso uma referência a uma forma mais agressiva de negritude?), negros rastas (o que sugere outro tipo de negritude, mais mística, talvez), magrelos maliciosos e, por fim, barrigudos cheios de fintas. Encontramos também a mulher gorda --uma espécie de manifesto contra o monopólio da capoeira pelos corpos sarados?-- e a loura do Plano --delicada e inocente?-- ao lado da mulata "gostosa"-- ambas estereótipo da mulher a ser conquistada?Mas por que elas batem tão forte e são tão más?
Isso gera até algumas perguntas: para cada um desses corpos a capoeira seria diferente? O tipo de corpo define também o tipo de capoeirista? Qual é a relação entre a aparência do capoeirista e o seu jogo? O corpo na capoeira é também uma forma de manifesto político?
Seria necessário mesmo entrevistar cada pessoa portadora de um visual próprio para responder a tantas dúvidas. Seria preciso que a estudiosa das academias do Porto viesse à Brasília estudar o meio da vadiação.
Só posso dizer que, idealmente, devem existir tantas capoeiras quanto capoeiristas existirem. A capoeira seria como um livro que cada leitor interpreta a seu modo de acordo com suas limitações e possibilidades. O importante seria cada um desenvolver seu próprio jeito de vadiar, respeitando o jeito do camarada, brincando e aprendendo com ele. Isto é como uma utopia capoeirística que nem sempre conseguimos por em prática.
Uma boa semana a todos!

quinta-feira, maio 18, 2006

O "parqu" e a capoeira (resposta a um fiel leitor)

Camaradas, ontem um amigo e leitor desse blog me perguntou se eu acreditava mesmo que o porquê da expansão da capoeira pelo mundo é a sua identificação com os povos oprimidos. Como contraponto a essa opinião, ele citou o exemplo do futebol, esporte criado e difundido pela Inglaterra imperialista que é hoje o mais praticado no mundo. Vou responder a ele, mas antes vou "cozinhando o jogo".
Essa coisa de cozinhar me lembrou a sopa "zurek" polonesa e os polacos praticantes do "parqu"-- entre os quais se inclui o filho do mestre Jorge. Tal esporte foi criado na França há alguns anos e consiste no aproveitamento dos obstáculos da cidade para fazer acrobacias. Esse pessoal pula de tetos de casas, salta o espaço que separa pequenos prédios, aproveita os muros da cidade para dar saltos mortais e outras loucuras mais. Por quê? Que diabos os caras querem com isso?
Uma explicação que eu tenho é a de que o "parqu" é uma forma de se apropriar da cidade, da "selva de pedra" vista como opressora do ser humano, de vencer os obstáculos que ela coloca à livre movimentação das pessoas e ainda aproveitar para fazer movimentos que os praticantes percebem como ligados à pura criatividade, à "irracionalidade", à diversão pura ao fazer algo porque se pode, e não porque um chefe manda.
O "parqu" é, então, uma espécie de vadiação européia. Penso que os mesmos motivos da expansão desse esporte valem para a da capoeira. A roda seria uma espécie de suspensão do cotidiano de um trabalho monótono, um reencontro do homem com uma fase mais livre e mais inocente de sua história. Ora, sabemos que os carregadores, estivadores e ganhadores do Recôncavo Baiano e da cidade do Rio de Janeiro jogavam entre um serviço e outro.
Assim, a expansão da capoeira não está ligada diretamente à luta contra a opressão, mas a um intervalo de um trabalho pesado. Hoje em dia, grande parte das pessoas trabalham em atividades repetitivas e monótonas, sentadas em frente a um computador. A capoeira seria uma forma de reencontro de uma hipotética natureza humana primitiva. A própria valorização do "baixo corporal" -- pés, pernas e quadris -- frente à cabeça, ao tronco e às mãos ilustra uma inversão do mundo cotidiano e racional, como escreve Letícia Reis.
Então, a capoeira pode ser, hoje em dia, uma válvula de escape para a vida moderna, estando mesmo ligada à manutenção da integridade psíquica das pessoas no contexto do capitalismo avançado. Este, inclusive, é um dos aspectos apontado por Mathias Assunção para a expansão da capoeira pelo mundo. A capoeira seria como que um estabilizador social nos países desenvolvidos.
Isso não quer dizer que estou substituindo a idéia de uma capoeira essencialmente libertária pela de uma capoeira essencialmente conformista. Pelo contrário, acho que muito coelho pode sair da cartola da capoeira nessa época de globalização, pois cada grupo social pode conferir a ela sentidos diferentes dependendo de sua realidade, e tais sentidos nem sempre introjetam a dominação.
Moreno

terça-feira, maio 16, 2006

Capoeira na Polônia

Amigos, sei que voltei sentimental de minha viagem à Europa, mas é porque, para mim, toda a viagem deve ser uma descoberta. Não só de uma outra cidade, mas também de si mesmo. Assim como uma cidade se doa ao viajante, ele também se doa a ela, se expondo a diversas situações desconhecidas, descobrindo qualidades que nem mesmo ele sabia possuir. Pois cada dobrar de esquina é um enigma. E esta relação não é simples, não. O viajante nem sempre está disposto a se arriscar, a se entregar.
Lisboa foi minha cidade-mulher. Porém, fui infiel. Cracóvia também é apaixonante, e mais: lá eu estava só, e portanto mais sensível aos encantos do lugar. A cidade possuía uma personalidade mais alegre -- essa foi a minha primeira impressão -- não sei se foi porque a conheci em dia de feriado e ela estava usando suas roupas mais coloridas. Tinha também um não sei quê de ex(r)otismo que o brasileiro imagina numa menina do Leste Europeu recém libertada da Cortina de Ferro.
Realmente, Cracóvia é uma cidade que possui um clima menos carregado do que sua irmã Varsóvia. É dominada por estudantes e não sofreu tanto quanto a outra com a II Guerra. Varsóvia está cheia de momumentos que lembram os mártires do Gueto e de regiões inteiras que foram reconstruídas depois de bombardeadas pelos alemães. Ela ainda mostra cicatrizes do que foram a guerra e o fechamento do período comunista. É uma cidade um pouco complexada, coitada. Mas grande parte de sua beleza está justamente no fato de ter sobrevivido e de ter sido foi tão amada a ponto de ser reconstruída.
Mas esse Blog é sobre capoeira. Então vamos a ela! Em Varsóvia, tive o privilégio de ficar hospedado na casa do mestre Jorge e da instrutora Ju. Participei de algumas aulas e rodas dos dois e foi assim que percebi a importância do método de treinamento criado na década de 60 pelo Senzala na expansão da brincadeira. Foi tal metodologia que tornou possível a formação de capoeiristas em países e contextos sociais e culturais --mesmo dentro do Brasil-- diferentes daquele da vadiação baiana ou das maltas do Rio de Janeiro. Os alunos do grupo de Varsóvia não têm nada a dever aos alunos do meu núcleo de Brasília, por exemplo.
Nas palavras do próprio mestre Jorge, eles estão muito bem tecnicamente, mas talvez falte ainda um pouco de malícia. No entanto, mesmo nesse quesito eles não estão muito atrás dos brasileiros, pois uma das características do método da capoeira esportiva --como já apontou Alejandro Frigério há 20 anos-- é a valorização da técnica e da plasticidade em detrimento da mandinga. Ganha-se de um lado, perde-se de outro.
Porém, o mesmo Jorge ainda confessa sentir falta de um jogo mais malicioso, apesar de ter rodado a Europa inteira em encontros e festivais de capoeira. O problema talvez seja que eles não têm tanto acesso a outras fontes de malícia: as rodas de rua, mais comuns no Brasil que na Europa. Isso deve se modificar em alguns anos com um maior desenvolvimento da capoeira naquele continente.
Encerrando esta postagem, agradeço novamente ao mestre Jorge pela hospedagem e pelas conversas sobre capoeira regadas a cerveja polonesa. Elas foram mais importantes do que os treinos, as rodas e as conversas com alguns de seus alunos. O Jorge é um cara que tem idéias bem definidas sobre a capoeira e como ela deve ser ensinada. Tive conhecimento de muita coisa que acontece nos bastidores da brincadeira mas que são parte importante da sua história. Fui até um confidente com quem ele falou de projetos futuros. Conhecer as histórias de bastidores é interessante porque evita a idealização de personagens, de grupos e de estilos de jogo, nos torna mais realistas e conscientes no meio da vadiação.
Ressalto o privilégio de ter sido interlocutor do mestre lembrando que ele não é um qualquer, hoje o Jorge é referência para a capoeira da Polônia, qualquer outro que chegar lá vai sofrer uma comparação com seus altos padrões, não só de treino mas também de comprometimento profissional. Esse contato mais pessoal de um mestre tão importante com um aluno sobre a sua concepção de capoeira nãoi tem preço. Valeu a pena ter viajado uns 15 mil quilômetros para realizá-lo.

Moreno

domingo, maio 14, 2006

Lisboa e a capoeira



Caros leitores deste modestíssimo blog, perdão pela ausência. É que me apaixonei e me separei do ser amado. Apaixonei-me por Lisboa, pelas reentrâncias d’Alfama e pelo balanço das barcas do Tejo, pelas tascas da Cidade Baixa e do Chiado, pelo sabor do licor de ginginha às seis da tarde perto do Rossio, ponto de reunião dos angolanos da cidade.

Se conheci os recônditos da cidade em Alfama, bairro antiquíssimo, travei contato com suas profundezas no Oceanário, em sua parte novíssima. Quando pensei estar íntimo, tive de ir embora. Resultado, senhores e senhoras: hoje estou na fossa. Só me resta ouvir a voz de Carlos do Carmo e me lembrar: “Lisboa, menina e moça, menina/cidade por minhas mãos despida/ teus seios são as colinas, varinas(...)/cidade-mulher da minha vida”.

Hoje me pergunto: “poderia eu ser feliz em Lisboa?”. Parece que muitas pessoas fizeram essa mesma pergunta para si mesmas e a responderam afirmativamente. Minha viagem foi para visitar um amigo que está clandestino em Portugal. Assim, pude ter contato próximo com a realidade difícil dos “brazucas” – termo pejorativo que designa os brasileiros imigrantes que vivem em Portugal. Cheguei a ficar um pouco deprimido na cidade: a paixão parecia ser doentia.

Porém, havia os momentos de alegria: as imperiais geladas e as doses de bagaceira nas tascas da Baixa-Chiado acabavam por integrar, de alguma maneira, brasileiros, portugueses, tchecos, angolanos e alemães. A cidade, afinal, seduzia vários grupos.

Aliás, o assunto para essa postagem é justamente um angolano que conheci em Lisboa. Fui a uma aula de um pequeno grupo de capoeira num local que era um misto de centro cultural, academia e restaurante. O mestre, um baiano cinquentão, não pareceu estar muito comprometido com o desenvolvimento de seus alunos portugueses. Deixou o berimbau na mão do angolano e ficou conversando com um funcionário da direção da academia. Para mim, ficou evidente que lhe faltava fundamento para mestrar uma roda. Mas não vou me ater a isso. Vou destacar dois pontos interessantes na condução de roda desse angolano.

Primeiro, em determinado momento, ele começou a cantar uma música cuja letra eu não entendia direito e num ritmo desconhecido para mim: pensei: é uma música angolana! Se o mestre vacilar, daqui sai outra coisa que não é capoeira!

O segundo aspecto é mais interessante: em outro momento da roda o cara puxou: “Vou me embora, vou me embora/Vou me embora pra Angola”, cantiga muito conhecida na voz de João Grande. Porém, quando chegou a hora, o cidadão hesitou e trocou Angola por Bahia. Pensei na hora: “o cara não quer voltar para seu país!”. Sua terra está longe daquela que foi idealizada pelos afro-brasileiros que vadiavam na Salvador do século XIX, ele não tem muitas ilusões sobre ela! Para ele era melhor viver ilegal em Portugal e no andar de cima de uma academia do que voltar para lá!

Esse acontecimento é interessante porque faz a gente pensar como é que um africano que vive a diáspora no período da globalização do século XXI vê a capoeira. Se de um lado, ele cantou uma canção luso-angolana na roda, por outro, ele se recusou, pela omissão da letra, a mitificar sua terra, como a tradição exigiria. Em dois momentos ele reinterpretou a capoeira da sua maneira.

Sabemos que os grupos de ativistas negros nos EEUU já criaram e sistematizaram uma concepção de capoeira. A brincadeira seria uma forma de atravessar o “Kalunga”, o Atlântico, a barreira que existe entre o mundo dos mortros e o mundo dos vivos, a África e a América.

Por outro lado, alguns poloneses com quem conversei, se identificam com a ética da malandragem da capoeira por que também foram dominados em toda a sua história, e para sobreviver também tinham que viver nas brechas de um sistema hostil.

Surge então a questão: de que forma a capoeira seduz angolanos, portugueses, poloneses, checos e outras gentes e como eles a interpretam? Talvez, como a minha cidade-mulher, a capoeira seduza toda a gente, por características que nem ela mesma saiba que tem tocando inocentemente finas cordas de sentimentos (como as das guitarras portuguesas) em todas elas.

Ó pá, isto é assim: acabou. Mas sigo um pouco melancólico, por ter me separado de Lisboa e por ter cada vez mais a consciência de que, como disse uma colega de capoeira: “ essa coisa (a capoeira) já não é mais só nossa (dos brasileiros)”. Tento me consolar com ajuda de Carlos do Carmo: “Se deixaste de ser minha/ não deixei de ser quem era/ por morrer uma andorinha/não se acaba a primavera.” E vou vivendo...