O Porto, o corpo e a capoeira
Segundo ela, ter um corpo malhado no Rio de Janeiro seria um sinal de distinção social. Para as mulheres, por exemplo, seria uma forma de mostrar sua independência, capacidade de iniciativa e força ao invés da dependência, passividade e fragilidade esperadas de um padrão de comportamento feminino tido como clássico. Assim, possuir gordurinhas no quadril, ou tê-lo um pouco avantajado, pelo menos na Zona Sul do Rio de Janeiro, está associado a um padrão de mulher ultrapassado.
Porém, existiria um lado perverso nesse novo padrão de beleza: perseguindo um corpo sarado as mulheres estariam erigindo como modelo um corpo masculinizado, musculoso e sem quadris. O feminismo das academias teria, então, uma face oculta androcêntrica.
No caso dos homens, o padrão corporal que demonstra força e independência seria mais fácil de ser conseguido, porém, muitos não se contentam com simplesmente estarem em boa forma e apelam para os anabolizantes. Para os homens, tamanho é documento, quanto maiores eles forem, mais admirados serão. Isso pode ser até compensação de uma timidez ou de uma falta de habilidade social. Ser forte, então, pode ser um meio de mostrar que se está integrado à sociedade das aparências em que vivemos hoje.
Sim, mas qual é a relação disso com a capoeira?--Pergunta o leitor mais atento. É que um corpo magro na vadiação pode significar --dependendo, é claro, do jogador-- uma sutileza na forma de brincar. Os corpos dos magrelos angoleiros, por exemplo, podem estar nos dizendo: "eu domino de outro jeito que não pela força", e isso seria uma forma de jogo até mais perigosa. Tal forma estaria mesmo muito próxima à forma de luta associada ao sexo feminino dentro e fora da roda. Um jogo mais sutil, enganador, porque jogado pelo mais fraco.
Acontece que, em muitos grupos e em muitas rodas temos visto que os capoeiristas mais graduados estão se "bombando" e aí o mesmo leitor afiadíssimo pode até perguntar se uma capoeira jogada por grandões que se impõem através do físico pode ser considerada uma arma do oprimido -- mais fraco-- contra o opressor, mais forte; do escravo contra o senhor, uma luta em que o importante seria a dissimulação do conflito e não o confronto direto. Um amigo leitor desse blog me disse que os negões estão mais para capitão-do-mato do que para escravos!
Mas o buraco é bem mais embaixo, essa não é uma questão simples. Por exemplo, todos os domingos vemos caras bombados na Roda da Torre. Os camaradas são como que garotos-propaganda daquele evento, quase que uma atração à parte, super-homens. No que diz respeito às mulheres, também encontramos a mulher negra sarada da periferia, com corpo esculpido e jogo "prá frente". Uma espécie de contrapartida feminina dos grandões.
Por um lado, eles simbolizariam uma capoeira que teria perdido um pouco de sua sutileza, mas por outro, vemos que o domínio que exercem naquele lugar e naquele momento muda a hierarquia da sociedade envolvente. Nesse caso, os mais fracos mandam.
E mais, não é só esse o tipo corporal que encontramos no ambiente da brincadeira; vemos hippies (adeptos de uma capoeira paz-e-amor?), negros com cabeça raspada (seria isso uma referência a uma forma mais agressiva de negritude?), negros rastas (o que sugere outro tipo de negritude, mais mística, talvez), magrelos maliciosos e, por fim, barrigudos cheios de fintas. Encontramos também a mulher gorda --uma espécie de manifesto contra o monopólio da capoeira pelos corpos sarados?-- e a loura do Plano --delicada e inocente?-- ao lado da mulata "gostosa"-- ambas estereótipo da mulher a ser conquistada?Mas por que elas batem tão forte e são tão más?
Isso gera até algumas perguntas: para cada um desses corpos a capoeira seria diferente? O tipo de corpo define também o tipo de capoeirista? Qual é a relação entre a aparência do capoeirista e o seu jogo? O corpo na capoeira é também uma forma de manifesto político?
Seria necessário mesmo entrevistar cada pessoa portadora de um visual próprio para responder a tantas dúvidas. Seria preciso que a estudiosa das academias do Porto viesse à Brasília estudar o meio da vadiação.
Só posso dizer que, idealmente, devem existir tantas capoeiras quanto capoeiristas existirem. A capoeira seria como um livro que cada leitor interpreta a seu modo de acordo com suas limitações e possibilidades. O importante seria cada um desenvolver seu próprio jeito de vadiar, respeitando o jeito do camarada, brincando e aprendendo com ele. Isto é como uma utopia capoeirística que nem sempre conseguimos por em prática.
Uma boa semana a todos!