segunda-feira, dezembro 25, 2006

"Então, é Natal..."



Camaradas, percebi que nas postagens anteriores ressaltei alguns aspectos negativos que acontecem no meio da brincadeira. Mas hoje é Natal e em breve estaremos num novo ano. E nesse clima de otimismo e fraternidade eu apresento alguns desenvolvimentos positivos do brinquedo percebidos por mim neste ano.
Já escrevi sobre uma tradição de disputa entre grupos, mas, paralelamente a ela, vem se desenvolvendo outra, de cooperação. Já presenciei reuniões de capoeiristas aqui em Brasília onde muita coisa construtiva foi decidida; estive presente num "papoeira" feminino onde foram discutidas questões de gênero na vadiação, a inserção da mulher na capoeira, além da prevenção a lesões de coluna.
A própria criação de um fórum de discussão como o "papoeira", idealizado pelo Mestre Pombo de Ouro, é uma oportunidade em que acontece a troca de idéias entre vários mestres e professores do DF e uma forma de promover a cooperação e o melhor entendimento dos mestres dentro do nosso meio.
A criação da Praça do Capoeirista no Zoológico de Brasília também foi um marco importante que aconteceu nesse ano em Brasília, tendo à frente os mestres Adílson, Pombo de Ouro e o mestrando Baleado.
A Roda da Torre, promovida todos os domingos pelo mestre Kall, também completou mais um ano. Esta roda é também é um bonito momento de cooperação no qual capoeiristas do Plano Piloto e das Satélites, brancos e negros, brasilienses e visitantes, brasileiros e estrangeiros vêm vadiar, com muita malícia, mas também com grande dose de respeito, colocando Brasília no mapa nacional da capoeira. Aliás, não só no mapa nacional, pois tenho fotos da mesma roda publicadas numa revista da República Checa.
Em postagens anteriores do meu blog já frisei que a localização dessa roda na feira do Torre de Tv, um dos principais pontos de turismo e de convivência de Brasília, combina muito bem com a malandragem necessária para se jogar capoeira.
* * *

Realizando uma avaliação pessoal do ano de 2006, lembro que fiz a minha primeira viagem internacional no mundo da vadiação globalizada. Fui a Portugal e à Polônia e vi coisas interessantíssimas. Em Portugal, presenciei a capoeira fazendo um retorno indireto a suas origens africanas: vi imigrantes angolanos entrando no meio capoeirístico de Lisboa.
Gostaria de ter conversado mais com essas pessoas para saber qual a sua visão do brinquedo, como eles interpretavam a vadiação e se relacionavam com sua africanidade e brasilidade. Pelo pouco que eu observei, eles possuem, dentro do meio da capoeira, um status mais elevado do que na sociedade portuguesa que os envolve.
A mesma coisa acontece com os próprios mestres brasileiros, que possuem certo status como trabalhadores culturais sendo, em geral, mais bem vistos do que os trabalhadores não-qualificados de mesma nacionalidade que estão presentes em grande número em Portugal, os chamados “brazucas”.
Na Polônia, tive uma surpresa com o alto nível dos alunos do mestre Jorge, do Beribazu. Camaradas que jogam e dão aulas em outros países europeus já me falaram que, em alguns países do Velho Continente, ainda não é possível jogar mais solto, realizando um jogo mais veloz e competitivo. Na Polônia, porém, encontrei capoeiristas de bom nível que não deixam nada a dever aos membros brasilienses do grupo possuidores de graduações equivalentes.
O interesse por tudo o que é brasileiro é patente entre os capoeiristas daquele país. Os alunos mais antigos falavam português fluente e se interessavam por samba, choro, frevo e funk carioca. Lá também a imagem do Brasil está muito ligada à alegria de viver, à espontaneidade. Chega a haver uma idealização muito grande da vida nas favelas brasileiras. Isso é até um pouco mais generalizado em Portugal.
Já ouvi falar que a identificação dos poloneses com o brinquedo, em contraposição à dificuldade de sua absorção por parte de povos de países com passado imperialista, teria a ver com a história de dominação vivida por aquele país, sempre às voltas com invasões russas e alemãs.
Vejam só que tempos interessantes de globalização: uma arte marcial que tem suas raízes na população escrava de origem africana transplantada para o Brasil -- fruto da capacidade de superação contra uma realidade adversa -- encontra ressonância no universo simbólico de um povo que teve que conviver com o domíno estrangeiro durante muito tempo de sua história. Uma situação próxima a da sujeição escravista, pelo menos na visão dos poloneses.


· * *
·
Por hoje é só, camaradas! É com esse espírito de otimismo que desejo um feliz Natal e um Ano Novo cheio de realizações dentro e fora da vadiação a todos nós.

domingo, dezembro 17, 2006

A “resistência surda” dos capoeiristas


Camaradas, um dos melhores livros que já li sobre nosso brinquedo foi o Capoeira - os fundamentos da malícia, de Nestor Capoeira. Recomendo para qualquer um que esteja querendo conhecer alguma coisa sobre a história da brincadeira e ter alguma noção da visão de mundo que está por trás dela. É dele a frase: "na Ásia, existe o zen; a Europa criou a psicanálise; no Brasil, temos o jogo da capoeira."
Essa frase mostra que Nestor vê a capoeira como uma criação cultural que responde a necessidades humanas fundamentais, tais como a necessidade de extravasar os instintos de violência existentes em todos nós, a necessidade de ritualização da existência; a busca, no contexto fragmentado da vida moderna, por uma âncora estabilizadora, pelo conhecimento de si e dos outros e por uma visão unificada do mundo.
Daí que, diferente de muitos autores, Nestor Capoeira não concorda com uma alardeada decadência da capoeira no mundo de hoje, fruto da "perda das tradições". Pelo contrário, ele defende que a "era de ouro" do nosso brinquedo não está num passado distante, mas no presente.
Apesar dessa visão otimista, Nestor Capoeira faz algumas críticas a determinadas visões do nosso jogo. Tendo participado dos primórdios do grupo Senzala, Nestor faz algumas reservas ao método de ensino criado por tal grupo nos anos 60. Baseadas na repetição, enfatizando o condicionamento físico e praticando uma forma meio autoritária de ensino, as aulas do grupo teriam deixado de lado a malícia e a criatividade da vadiação como ensinada e praticada pelos velhos mestres baianos.
Isso não impede o autor de reconhecer o marco que foi esse grupo para a história do brinquedo. Hoje em dia, quase todos os grupos de capoeira, incluindo os de angola, utilizam algumas de suas contribuições, e essa convergência foi que levou alguns estudiosos, nos anos 80, a escreverem que a vadiação estava conhecendo uma unificação em torno de uma "capoeira contemporânea" que juntaria angola e regional e teria métodos semelhantes de treinamento.
O Senzala da década de 60 fez com a capoeira algo parecido com o que mestre Bimba fez com a vadiação nos anos 30: criou uma nova metodologia de ensino, com uma estética mais esportiva do jogo (golpes esticados e maior velocidade) e apresentou a capoeira para estratos sociais distanciados da vadiação. Afinal, o fato de o grupo ser formado por garotões brancos da Zona Sul do Rio de Janeiro, vitoriosos em vários campeonatos nacionais, colaborou para a disseminação tanto de seu método de ensino quanto de sua estética de jogo.

* * *

Esse assunto de metodologia de ensino é muito interessante. Eu tendo a perguntar até que ponto um sistema pedagógico pode moldar um capoeirista. Tudo bem, sabemos que dois capoeiristas que treinam no mesmo grupo com o mesmo mestre tendem a desenvolver um jogo parecido, mas será que não existe um limite para a fabricação de robôs? O fisiotipo, o desenvolvimento dos músculos e de sua elasticidade e até mesmo o temperamento do(a) camarada, não estabeleceriam um limite para o método?
Esse assunto é fascinante porque toca num tema muito caro a nós capoeiristas: a liberdade de desenvolver um jogo próprio e de encontrar a sua individualidade na vadiação. Segundo o discurso de todos os mestres -- mesmo o daqueles que utilizam os métodos mais autoritários -- este seria o objetivo de todo o capoeirista.
È claro que, na maioria das vezes, o que acontece é que a pessoa acaba adaptando os movimentos ensinados pelo mestre à sua constituição física, o que não deixa de ser uma forma de desenvolver o próprio jogo.
Porém, o mais interessante é que, muitas vezes, o limite ao método é dado por aspectos que estão fora do controle do aluno. Temperamento e fisiotipo são coisas que podem ser trabalhadas, mas que não podem ser modificadas. Então, muitas vezes, a resistência ao método é surda e aparece na forma de uma insatisfação difusa para com o professor ou mestre; ou mesmo sob a forma do não-aprendizado de determinados movimentos ou de uma postura de jogo exigida pelo grupo.
Ora, então, a adaptação do aluno a um grupo tem a ver com alguma correspondência entre fatores de sua personalidade que ele não pode mudar e a forma de ensino do grupo ou do mestre. Assim, idealmente, a escolha de um grupo deveria ser fruto de afinidades eletivas, diria o escritor alemão. “O semelhante atrai o semelhante”, diria o mestre Pombo de Ouro.

* * *

Tenho um camarada bem longilíneo que passou anos treinando num grupo que repetia todo dia aú com a cabeça no chão. Esse colega até se esforçou, mas até hoje não consegue fazer muito bem esse movimento. Assim, meu colega pode ter sido ensinado de uma forma não adequada ao seu temperamento, seu fisiotipo ou ao seu ritmo de aprendizagem. Convenhamos que, para uma pessoa alta, o movimento de colocar a cabeça no chão é mais problemático do que para um baixinho e pode até mesmo ensejar situações de jogo que lhe seriam muito desfavoráveis.

* * *

O método de ideal de ensino deveria ser muito próximo da não-existência de método, deveria aproveitar as características de cada aluno para criar um capoeirista diferente, deveria trabalhar cada aluno individualmente. Mas isto seria pedir demais, não é?

sábado, dezembro 09, 2006

Uma tradição que queremos esconder

Camaradas, muitas pessoas têm a imagem da capoeira como uma manifestação cultural pura e inocente, livre de jogos de poder e de disputas que parecem ter a ver com vaidade. Quando converso com pessoas de fora do meio sobre esse assunto, elas chegam a ficar espantadas: lutas por espaço e por prestígio são coisas que muitos julgam não existir no meio da brincadeira. Muitos pensam que isso é uma coisa recente, da época atual em que uma tradição de respeito mútuo teria se perdido. Mas não é verdade, a competição por prestígio e pelo poder de influenciar a maior quantidade de capoeiristas possível é também parte da tradição da brincadeira.
Basta lembrarmo-nos da disputa que envolveu os mestres Pastinha e Noronha no surgimento mesmo do Centro Esportivo de Capoeira Angola nos anos 40. Ou da inimizade entre dois mestres famosos da Salvador dos anos 60 fomentada pela competição por incentivo financeiro da Secretaria de Turismo da Bahia. Segundo Waldeloir Rêgo, esses dois mestres chegaram a encomendar despachos um contra o outro.
É interessante a gente ficar consciente dessas disputas de poder porque elas influenciam até no estilo de capoeira dominante de cada época. Num churrasco aqui em Brasília, um camarada paraense me falou mais ou menos o seguinte: "eu era sarobeiro, treinava com um grupo lá no Pará que tinha o seguinte padrão de ginga: a cada troca de base batia duas palminhas. Depois chegou na cidade um cara do Rio de Janeiro, aluno de um mestre que ninguém lá no Pará conhecia, dando porrada em todo mundo e mudando o estilo da ginga e da movimentação. O resultado foi que passei a treinar com esse grupo carioca."
Em outro estado do Norte, ouvi de um mestre importante que ele teve de aceitar um desafio de porrada de um capoeirista recém-chegado na sua cidade. Foi uma batalha não por dinheiro -- porque numa cidade pequena não dá mesmo para ganhar muito dando aula de capoeria-- mas por prestígio dentro do meio capoeirístico, pela manutenção de um domínio espacial.
No sul, ouvi a confissão de um mestre histórico que disse ter ficado até psicologicamente afetado pelo clima muito competitivo de disputa entre seu grupo local e outro que estava se expandindo nacionalmente. Segundo ele, o nome desse grupo não era nem mencionado dentro do seu círculo de alunos. Isso parece ter servido como um exorcismo simbólico do grupo rival do mundo da capoeira. O rival era tão odiado que era demonizado.
Esse padrão parece ter sido muito forte no Brasil no final dos anos 80 até o começo dos anos 90. Talvez porque grupos com uma política agressiva de expansão meio que desarranjaram a divisão espacial da capoeira no país inteiro. Uma capoeira mais marcial e até desleal deve ter se desenvolvido nesse contexto, numa época em que houve desavenças que chegaram às vias de fato fora da roda.
No exterior, essa disputa permanece, porém com uma característica menos física, mas com uma violência simbólica muito grande. A estudiosa portuguesa Ana Jaqueira compara a expansão da capoeira pelo mundo com um projeto colonial, uma vingança do colonizado sobre o colonizador, com uma ideologia clara de dominação cultural e de manipulação dos novos adeptos. A capoeira seria um "polvo brasileiro" espalhando seus tentáculos pelo mundo e dividindo-o em possessões coloniais.
Camaradas, por essa semana é só. Espero não ter chateado ninguém mencionando um lado de nossa tradição que não é aquele que queremos mostrar.
Moreno