quarta-feira, agosto 30, 2006

Lembranças de violência

Segundo o mestre Pombo de Ouro, os pais deveriam conhecer a academia em que seus filhos treinam, pois para a criança ou adolescente o mestre adquire um papel muito importante, capaz de influenciar a sua vida de maneira determinante.

Lembro-me de um episódio que aconteceu numa academia que eu freqüentava no final dos anos 90. Durante a roda, um dos capoeiristas levantou o outro acima da cabeça e o jogou com toda a força no chão. E depois disso, a roda continuou. O cara estrebuchando lá no chão, mas a roda continuou. Só que a mãe de uma criança que treinava na academia estava presente e foi conversar com o mestre: ela achava um absurdo que ele permitisse que seus alunos cometessem atos de violência como esses numa roda de capoeira e comunicou ali mesmo que seu filho não voltaria mais para a academia (e provavelmete para a capoeira). Fiquei meio de lado, escutando a resposta do cara: "A senhora há de convir que eu não posso controlar o impulso natural dos meus lutadores".

Ele não podia ou não queria? A verdade é que a conduta daquela mulher foi perfeita: foi assistir à roda em que seu filho jogava e, ao não aprovar a concepção de capoeira do grupo, tirou o filho das aulas.

Em outras rodas, já vi o jogo degenerar em pancadaria com puxões de cabelo, tapas e murros rolando por todos os lados, numa perda de controle absoluta dos jogadores. E o berimbau continuava tocando, denunciando a concepção de que para o mestre aquilo era capoeira. A perda do controle e a vitória dos instintos mais violentos -- cujo controle é o objetivo de todas as artes marciais -- eram aceitas nas regras daquelas rodas.

Em muitas dessas ocasiões, o mestre gritava -- "iê" -- mas os caras não paravam de se agarrar e de se socar; e nem o mestre esperava que o fizessem, pois na cabeça daquele grupo o próprio desrespeito ao comando significava uma afirmação da sua valentia, do espírito lutador que era valorizado pelo grupo. Os caras que se esmurravam "desrespeitando" a ordem eram o exemplo a ser seguido.

Acontece que, assim como a maioria dos capoeiristas associa a capoeira à diversão e à brincadeira, para algumas daquelas pessoas, o jogo acabou associado à violência, à perda total do controle dos próprios atos nas rodas que aconteciam nos fins de semana. E isso pode ser treinado todo o dia, e inclusive fomentado com o uso de anabolizantes.

Aqueles com tendências mais agressivas ou com uma história pessoal mais complicada foram os que entraram por esse caminho do descontrole, cujo desenvolvimento era estimulado pelo seu mestre, pois -- como afirma o mestre Pombo -- dentro do homem convivem tanto o assassino quanto o amigo leal e ambos podem ter o seu desenvolvimento estimulado pela capoeira dependendo do direcionamento dado pelo professor. Assim, segundo o mestre, uma pessoa agressiva deve aprender a controlar sua agressividade para utilizá-la no momento e na intensidade apropriados a cada ocasião.

E o pior é que -- e isso eu aprendi em 2 anos e meio de magistério -- o mestre pode estar passando, sem ter consciência, valores contraditórios. Por exemplo, a contradição entre as palavras e os atos de um instrutor e a discrepância entre a postura corporal, a expressão do rosto ou o tom de voz, podem ser percebidas pelo aluno.

Assim, ao valorizar a perda do controle, a valentia e o sentimento de que não se deve desisitir de uma pancadaria, o mestre não podia esperar que o "iê" fosse obedecido. Na verdade, o desrespeito a ele naquele momento era a glória tanto para o aluno quanto para si, pois a lição que ele ensinara tinha sido aprendida.

domingo, agosto 27, 2006

O que dizem algumas músicas de capoeira?

Senhores, quero com a crônica de hoje dar uma olhada nas letras das músicas de capoeira. Em algumas, podemos perceber ecos das disputas que existiam no meio da brincadeira; em outras, uma visão da ética que certos grupos possuem nas rodas.
Hoje fui a uma roda famosa na cidade e ouvi mais uma vez a seguinte cantiga: "Jogo mas eu não sou/Angoleiro/ toco mas eu não sou/ Angoleiro/ faço chamada mas eu não sou/ Angoleiro...". Geralmente, essa música é tocada por grupos do que se convencionou chamar "capoeira contemporânea" quando resolvem baixar o toque para angola. À primeira vista, parece um pedido de desculpas aos "verdadeiros" angoleiros, aqueles que possuiriam raízes que os ligam diretamente aos velhos mestres baianos. Jogar angola não seria apenas fazer o que os angoleiros fazem, seria necessário estar ligado a uma linhagem, a uma escola que teria concepções bem fundamentadas sobre o jogo, valorizando a ancestralidade africana do brinquedo tanto no ritual, quanto na movimentação.
Por outro lado, pode ser encarada como uma cantiga que ironiza esse mesmo fato: "ora, se eu faço tudo o que um angoleiro faz, porque é que eu não sou angoleiro?" -- estaria dizendo o cantador. Se a roda toca angola e o pessoal que tá jogando não sabe jogar angola, por que é que eles estariam fazendo -- e em público -- uma coisa que não sabem fazer?
Outra música que toca na demarcação de estilos é aquela:"Como é que tocava seu Bimba?/ Mestre Bimba tocava sentado". Devia haver um pessoal revoltado com o fato de estarem dizendo que uma das principais diferenças entre as duas escolas era a bateria estar de pé ou sentada. Ora, surgiu um cara que viu as imagens antigas do criador da regional e se tocou: "rapaz, não é que o homem tocava sentado!".
É claro, não sou ingênuo, essas músicas são respostas dos adeptos da capoeira contemporânea ao pessoal ligado ao ressurgimento da Angola nos anos 80. Estariam defendendo a idéia de que a capoeira seria uma só. Hoje em dia, essa disputa já está meio arrefecida, parece que todos se enxergam como escolas diferentes mas não excludentes, apenas formas diferentes de se interpretar o brinquedo. Numa sociedade diversificada não deveria haver também escolas diversas da brincadeira?
A questão ética é trazida por outra cantiga que tem uma parte que diz:"mas o bom capoeira não corre/ nem escolhe o lugar pra jogar". Não sei quanto a vocês, mas eu só respondo o coro dessa música por obrigação, pois a sua integridade física pode estar em perigo se você entrar em determinadas rodas em determinados momentos!
O mestre Luiz Renato também é contrário aos valores expostos pela cantiga. Citando a constituição brasileira, ele diz que "ninguém é obrigado a fazer nada a não ser por força da lei". Um princípio herdado da Revolução Francesa que tem o objetivo de proteger o direito de livre escolha do cidadão contra a coação.
O mestre Pombo de Ouro possui uma visão diferente, porém não conflitante. Diz que se a alma do capoeirista combinar com o clima da roda, ele deve jogar. Isso soa como algo místico, mas também tem muito a ver com auto-conhecimento, com o saber se virar num mundo povoado por forças diversas situadas tanto dentro como fora do indivíduo, com a ética da malandragem e com o processo de individuação. Uma ética diferente tanto daquela do valente quanto da do indivíduo moderno.
Por hoje é só camaradas!

segunda-feira, agosto 14, 2006

A roda de capoeira como "comunidade imaginada"

A questão de a capoeira corresponder à necessidade de vertigem do ser humano não explica a sua expansão pelo mundo. Seria a capoeira simplesmente um escapismo? As pessoas jogariam capoeira somente para "ter um barato"?
Não dá para escapar da especificidade da capoeira, sua ligação com a cultura afro. Será que nesse mundo onde "tudo o que é sólido desmancha no ar", como escreveu Marx, a capoeira aparece como algo cuja identidade permanece imutável e forte, capaz de dar um porto seguro para aquele que a pratica?
"A transitoriedade que a modernidade imprime ao mundo encontra um obstáculo na capoeira." Pensariam -- ou melhor, sentiriam -- alguns de seus praticantes e alguns de seus mestres propagam tal idéia. Isso não é algo despropositado, pois a brincadeira teria um mito de origem, um panteão de pais fundadores e linhagens às quais estariam filiados todos os capoeiristas do mundo de todas as etnias. Isso basta para dar segurança a pessoas que vêem o mundo ao seu lado passar por fortes mudanças. A capoeira permaneceria, ligaria as pessoas com o passado e o futuro, fornecendo uma teia de segurança para todos eles. Não é isso o que defendem vários mestres pelo mundo?
Lembro-me de que este também é o contexto que deu origem aos fascismos. Estaria ela, de alguma maneira, substituindo a necessidade de uma utopia, seria esta utopia necessariamente autoritária?
Ou, citando Benedict Anderson, podemos dizer que uma roda de capoeira cria uma "comunidade imaginada" que, por sua própria natureza só carrega os ideais positivos de igualdade e fraternidade? Opa, isso é interessante: o grupo de capoeira (e a própria roda) como uma comunidade imaginada! Algo como o nacionalismo não contaminado pelo imperialismo ou pelos facismos!
Só que, num segundo momento, e assim como o nacionalismo para Anderson, essa comunidade pode adquirir várias características que dependem da organização de cada grupo e do relacionamento de cada mestre com seus alunos. É por isso que muita coisa dúbia acontece na capoeira hoje em dia. Em todos os grupos coexistem elementos autoritários e libertários, modernos e tradicionais em doses diversas.

Moreno

quinta-feira, agosto 10, 2006

O transe capoeirano e a busca da vertigem II

Alguns mestres, como o mestre Pombo, ligam a capoeira à umbanda. Na verdade, essa ligação depende somente da crença do praticante. A vadiação baiana ou a capoeira carioca eram praticadas em contextos de recreação, que não tinham a ver com religião. Outras lutas produzidas pela diáspora africana também (como escreve Matias Assunção).
Como frisei na última postagem, a vertigem é como que um instinto com o qual o homem tem de aprender a conviver. Podemos dar vazão a ele dançando, jogando capoeira, brincando na montanha-russa, saltando de bungee-jump, fazendo rapel e até consumindo drogas. Isso são algumas formas que a vertigem assume nas sociedades modernas.
Por outro lado, sabemos que existem religiões (as afro-brasileiras, por exemplo) que o erigem como elemento central de seu sistema de idéias; e sociedades (tradicionais) em que a vertigem ocupa um lugar proeminente. Essas são outras formas segundo as quais a diversidade humana lida com a instituição do transe.
Para mim, o grande lance da capoeira é o controle do transe, a aliança entre ilinx (vertigem) e agôn (competição). E isso é algo que comporta tanta religião quanto dançar um forró ou jogar futebol. Na minha concepção, a capoeira como qualquer esporte, pode ajudar no auto-conhecimento ou mesmo no conhecimento das sociedades humanas.
Existem cronistas esportivos fantásticos que sabem como falar de futebol e da existência humana, vista como tragédia ou mesmo como epopéia, como Nelson Rodrigues. Mas isso não quer dizer que devemos transformar o futebol numa religião. Tratar a capoeira como religião é uma forma de mistificá-la, criando uma mais uma "seita pop" ou mesmo de transformá-la numa ideologia autoritária de uma franquia multinacional, capaz de justificar alguns fanatismos. Na verdade, o maior perigo para o aluno na capoeira é o culto à figura carismática do mestre, que hoje em dia se mistura com os objetivos empresariais do cultuado.
Admiro a opinião do mestre Pombo, segundo a qual o ser humano se mostra como ele realmente é na roda de capoeira, ou seja, auto-controle, nervosismo, agressividade, paciência, dedicação aos treinos são qualidades da pessoa que acabam sendo mostrados numa roda e acabam sendo meios de auto-conhecimento.
Acontece que, segundo a tradição afro-brasileira, tais qualidades podem ser produzidas por forças externas ao indivíduo: entidades que povoam o mundo sobrenatural e que têm influência sobre os homens. Segundo o pensamento ocidental, essas forças não seriam externas, são oriundas do próprio indivíduo, do seu subconsciente ou expressão dos arquétipos coletivos da humanidade. Na verdade, o que se evidencia aqui é uma diferença entre um sistema de psicologia ocidental e outro de matriz afro. Duas idéias diferentes de indivíduo, mas que, em alguns momentos, possuem semelhanças.
Moreno

segunda-feira, agosto 07, 2006

O transe capoeirano e a busca da vertigem

Caros leitores, nas postagens anteriores toquei no assunto do "transe capoeirano" e na mistificação criada sobre ele no mundo da capoeira. Pois bem, o objetivo desta postagem é tentar esclarecer melhor o que seria o "transe capoeirano" de modo a desmistificar um pouco essa idéia, que pode ser aproveitada para exaltar exageradamente uma qualidade da capoeira que não é rara no mundo dos jogos e das atividades humanas.
Tive contato com essa expressão pela primeira vez no site do Dr. Decânio que dizia que o praticante de capoeira "alcança um estado modificado de consciência em que o Ser se comporta como parte integrante de conjunto harmonioso em que se encontra inserido naquele momento (...) O capoeirista deixa então de perceber a si mesmo como individualidade consciente, fusiona-se ao ambiente em que se desenvolve o jogo de capoeira". Por vezes, o mesmo autor coloca o transe capoeirano como algo próximo de uma experiência mística e religiosa.
Recentemente, li o livro de um sociólogo chamado Roger Caillois intitulado Os homens e os jogos - A máscara e a vertigem. Em linhas gerais, Caillois divide os jogos segundo quatro características básicas que têm a ver com quatro instintos presentes nos seres humanos: a competição, busca pela sorte, o disfarce e a vertigem.
Os jogos/brincadeiras competitivos são aqueles em que cada participante depende somente de seus próprios meios para derrotar os oponentes. Como exemplo, o estudioso cita as corridas do atletismo e, no campo da formação das sociedades humanas, tal instinto seria básico na sociedade moderna capitalista.
Os jogos de azar são aqueles em que o participante não tem nenhum controle sobre o seu desfecho. A roleta e os dados são exemplos clássicos. Tal qualidade apareceria freqüentemente associada ao princípio da competição na estrutura das sociedades modernas, onde os indivíduos lutam contra suas limitações de nascimento e riqueza (determinadas por fatores sobre os quais eles não possuem controle) ou mesmo utilizam-nas para ascender socialmente.
Os jogos de disfarce são aqueles em que os participantes assumem outra identidade. Assim, as crianças brincam de casinha, de polícia e ladrão, de super-heróis. A sublimação desse instinto estaria no campo das artes dramáticas. Juntamente com a busca pela vertigem, seria a característica humana dominante nas sociedades pré-modernas, estando na base das religiões que envolvem a possessão. Nas sociedades modernas, festas como o carnaval seriam a sua expressão atual.
Por fim, os jogos que correspondem à satisfação do instinto da vertigem são aqueles em que o jogador busca a desorientação espacial e temporal, realizando-as numa espécie de transe hipnótico. São exemplos desse tipo de jogo/brincadeira a montanha-russa, o bungee jump e o carrossel dos parques de diversões. As religiões de xamânicas e de possessão corresponderiam à sublimação dessa característica humana. Nas sociedades modernas, a vazão aos instintos de vertigem aconteceria nos parques de diversões.
É nessa última categoria de jogos que Caillois coloca danças como a valsa e atividades físicas como a realização de acrobacias. Isso porque a música e os volteios interferem na percepção espacial e temporal dos dançarinos. O mesmo valendo para as acrobacias.
Ora, nós capoeiristas sabemos que faz parte das características básicas da nossa brincadeira (tal como das acrobacias) as inversões do alto pelo baixo -- penso nos movimentos como os vários tipos de aú, o macaco, a bananeira, os balões cinturados e os saltos mortais -- e da frente pelas costas (meia-lua de compasso, armada, queixada, rolê e outros movimentos que envolvem giros).
Com a valsa, a capoeira teria em comum -- além das inversões da frente pelas costas -- o princípio do preenchimento dos espaços vazios deixados pelo parceiro de jogo/dança, de que fala muito o mestre Pombo de Ouro. Tal príncípio aparece muito bem ilustrado naquele famoso jogo entre João Grande e João Pequeno em "Dança da Guerra", ou nas próprias seqüências do mestre Bimba. Além disso, a presença da música no nosso brinquedo também é uma característica fundamental de sua estrutura. É a música e o seu ritmo que define a velocidade e a própria natureza do jogo, mais competitivo ou cooperativo, por exemplo.
Portanto, é no campo dos jogos que satisfazem ao instinto da vertigem que eu colocaria a capoeira. O transe capoeirano de que fala Dr. Decânio corresponde à vertigem, ao ilinx, que é o termo utilizado por Caillois para denominar tal instinto. E mais, o transe capoeirano poderia estar conjugado ao instinto de competição, já que o próprio autor argumenta que, freqüentemente, os instinto aparecem associados aos pares em várias atividades humanas. Essa combinação é que daria o caráter de arte-marcial à nossa prática.
Por enquanto é isso. Pretendo voltar ao assunto em futuras postagens.

Moreno